quarta-feira, 14 de julho de 2010

Por entre as frestas

Feche a mão em concha e coloque um pouco de leite nela. Observe que se você não apertar os dedos com força, o leite escorrerá pelos espaços entre os dedos. Há uma expressão em inglês, “slip through the cracks”, que sempre me traz essa imagem à mente. Para ser sincera, sei que traduções como “escorrer por entre as fendas”, “escapar por entre as brechas” e muitas outras que podemos encontrar no Google para essa frase são inadequadas, embora todas elas possam invocar imagens muito, muito interessantes. Na verdade, a expressão se refere comumente a um tipo de falta de atenção que pode provocar o afastamento de um indivíduo em relação a um grupo num determinado ambiente, como numa escola ou numa família.
Todas as escolas, assim como todas as famílias, apresentam rachaduras. São espaços de desatenção, aberturas outras pelas quais se pode passar além das institucionalmente desejadas e criadas, como as portas e as janelas. Ao adentrarmos pelas portas e nos debruçarmos nas janelas estamos no espaço onde somos vistos, reconhecidos, onde dialogamos com os outros em ambientes bem iluminados. O local das rachaduras, das frestas, não é assim. É mais escuro e lá reinam o esquecimento e a não nomeação das coisas, principalmente das que nos incomodam. O cantinho das frestas é onde nos escondemos quando a auto-estima está lá em baixo e não temos condições de suportar a entrada pela porta.
Em meios extremamente rígidos, onde as portas e janelas estão fechadas e a iluminação não é convidativa ao diálogo, as frestas são os lugares pelos quais as pessoas fogem, numa tentativa de salvaguardar sua individualidade do esmagamento. Sem dúvida esses não são ambientes saudáveis, se o “ser” não pode entrar pela porta da frente, respeitado em suas peculiaridades.

Nas escolas e nas famílias atuais, contudo, é um pouco mais raro encontrar tamanha rigidez que as frestas se tornem janelas pelas quais se pulem. O que é muito mais comum acontecer é a criança ou o adolescente escapulir pelas brechas da superlotação das salas de aula, pelo baixo número de cuidadores e professores, pela incompetência em se perceber emocionalmente o aluno – mesmo o que apresenta boas notas – pela falta de tempo dos pais e dos cuidadores domésticos, pelo excesso de cobranças, pela escassez da convivência.
O preço de se perder alguém pelas frestas do sistema, seja ele qual for, é a alienação física e emocional desse indivíduo que, no entanto, não está em condições de ficar sozinho, ainda que seja esse seu brado. É impossível e mesmo não desejável dar atenção a tudo e a todos ao mesmo tempo. Mas é importante perceber o afeto escorrendo por entre os dedos a tempo de reter na mão o líquido precioso que constrói, alimenta e aprofunda as relações de vida.