segunda-feira, 30 de julho de 2012

Injeção na testa

Cada qual com suas aventuras. Pois aos quarenta e cinco anos achei que era hora de ceder ao ditado e tomar injeção na testa. Minto. Não foi bem ao ditado que cedi, uma vez que o procedimento não foi gratuito. Cedi a que, então? A vontade de manter uma aparência jovial. Mas não tenho bem certeza que seja uma boa idéia declarar tal fraqueza (dirão alguns) ou estratégia (admitirão outros) em público. Do leque de mentiras insanas que nós mulheres contamos para manter nosso expediente darwiniano de seleção do macho mais bem qualificado, o desinteresse na manutenção da juventude é um dos hits. Pencas de atrizes e modelos famosas e lindíssimas afirmam nada fazer para manter sua aparência, que se deve a uma boa alimentação. Temos dificuldade de engolir essa por sabermos que já passaram a casa dos quarenta e a dos cinqüenta há muito tempo e, ainda assim, mantêm um frescor que parece inimaginável na amiga que compartilha exatamente da mesma idade da televisionável da vez, empertigada no sofá de seu programa de debates. Ou seja, tais mulheres são milagres da natureza, o tempo as afeta, mas apenas de forma graciosa. Bonito isso, como ficção. Dentre as mulheres que escrevem e as quais admiro, várias alegam não possuir nenhum traço de vaidade, se dizem avessas a imposição da juventude como padrão de beleza – e com elas eu não poderia concordar com mais convicção. Contudo, ao vê-las ao vivo encontrei mulheres de pele bem cuidada, magras, maquiadas, penteadas, unhas feitas, vestidas com uma sensualidade elegante e aparentando ser mais jovens do que são. Sob hipótese nenhuma a figura de uma Amélia, aquela, sem a menor vaidade. Uma mulher de verdade. Surpreendi-me, mas não muito. Afinal, essa é a natureza das pessoas de verdade, especialmente das que se expõem publicamente: querem ser apreciadas e, para as mulheres, o apreço pela beleza é especialmente caro. Gostei de a médica ter dito que perderia a expressão “braba”, em mim, a do cenho permanentemente franzido. Para os míopes como eu, o que é interpretado como mau humor muitas vezes é só cansaço ou falta de lentes. Ocorre de olharmos para alguém numa reunião com cara de profunda irritação – cenho franzido, lábios cerrados – porque na verdade não estamos enxergando muito bem os traços faciais do nosso interlocutor. Agora, não mais. Ares de lago tranqüilo são comigo mesma. Permaneço não enxergando, mas não dá na vista. O que piora um pouco quando as pessoas reclamam que não as cumprimentei. Dificultou explicar que não as vi, mas, enfim, não se pode ter tudo. Como ainda não estou na turma dos que parecem fugidos do Madame Tussauds, me agrada pensar que passei a participar de uma comunidade de gente de aspecto sereno, que intimamente apelidei de os zens do botox facial. Para fins de consumo externo é bem mais rápido do que atingir serenidade interior, admitam. Crescemos em números exponenciais, dentro e fora da TV. Muito em breve seremos incontáveis vovôs e vovós de feições plácidas e sorrisos de Mona Lisa, gente aparentemente muito equilibrada e confiável. Pode chegar para conversar. Só por favor, não se detenha no lampejo insano do olhar.

No banheiro

Banheiro feminino de um grande shopping center na capital do estado. Devido ao horário, início de tarde, razoavelmente cheio. Esperando com minha filha a vez de usar um toalete, vou observando as mulheres que coabitam esse espaço conosco durante alguns (longos) minutos e ouvindo suas conversas. Passado pouco tempo me sinto melancólica e desejosa da existência obrigatória de banheiros só para crianças. Duas moças de terninhos pretos bem cortados vão calçando seus stilettos também pretos, muito altos e elegantes, enquanto guardam suas sapatilhas e tênis em mochilinhas. Em seguida começam por retocar suas pesadas maquiagens com o apuro e a precisão de quem está habituada a fazê-lo com frequência. Na minha imaginação as vejo em seus respectivos ônibus (preconceito?), quase completamente montadas (arrumadas), a caminho do trabalho na loja de grifes na qual permanecerão provavelmente até o fechamento do shopping. Baixo os olhos para meus tênis do tipo Converse e rememoro as tantas vezes em que atendentes com aparência semelhante as dessas moças me avaliaram de cima a baixo já na entrada da loja deixando evidente em seus rostos e atitudes a conclusão de que provavelmente não valeria a pena gastar tempo comigo, no que se refere ao ganho de comissão. Estivesse no lugar delas, pensaria eu da mesma forma? Reconheço que provavelmente estão certas em sua avaliação sobre meus gastos. No espelho seguinte há outras duas moças, adolescentes provavelmente, jogando o jogo do “meu cabelo está horrível”. Funciona mais ou menos assim: cada uma destrata as qualidades dos seus cabelos numa escalada sem fim, sem nunca admitir que, talvez, o cabelo não esteja tão feio assim e nem o da amiga. É quase um monólogo, só que a dois. Uma loira, cabelos até a cintura, uma morena, cabelos até o meio das costas. Lindos, na minha leiga opinião. Uma vez tendo os cabelos escovados, presos, soltos, arrumados com esmero e feroz desmoralização verbal, lá se vão elas porta a fora balançando as madeixas. O jogo “meu cabelo está horrível” tem um concorrente muito forte, que é o “estou gorda” ou “preciso emagrecer”, ao qual se dedicam duas mulheres na fila a nossa frente e também algumas senhoras que ocupam os últimos espelhos ao final dessa área do toalete. Nesse tipo de ritual auto depreciativo geralmente não há consolo que seja aceito. Dicas de dietas, remédios e afins são bem vindos, mas a sugestão, inclusive utilizada por algumas das senhoras, de que você está bonita é recebida quase como um despropósito, por ouvidos moucos e olhares aprisionados ao espelho. Olhar para a interlocutora, somente via espelho. No banheiro feminino a estética impera. E é uma estética feroz. Não há espaço para meios termos, para reflexões equilibradas, para aceitações amorosas da imagem refletida. A imagem de uma mulher que já passou por tanta coisa. Que tem tanto ainda por fazer. Vai ver que essa obsessão pela aparência se deve a estarmos no chamado templo do consumo e há que se sair do banheiro ansiando pelas melhorias que estão expostas em cada vitrine, coisas que ainda não possuímos, soluções para nossos egos maltratados. Cremes para os cabelos, cintas para as barrigas, atendentes que nos pressionam a aspirar à aparência de riqueza, está tudo lá. Basta comprar. E continuar comprando. Até encher de amorosidade (ou seria inveja que buscamos?) o vazio que acreditamos estar no olhar de quem nos vê, na verdade reflexo do nosso próprio olhar severo. Mas é mais provável que o limite do cartão de crédito estoure antes que tal vazio possa ser preenchido.

Um jantar ágape

Você se senta à mesa para jantar com alguns conhecidos e outros nem tanto. A conversa rola amena, primeiramente sobre a refeição em si e, minutos depois da primeira garfada o assunto deriva para “Do que você se arrepende?”, continuando com “Quem você não pode perdoar?” e “De que você tem medo?”. A primeira vista parece ameaçador, mas não há o que temer. Todos ao redor daquela mesa estariam despidos do temor de revelar a si e também da curiosidade maníaca de ouvir o próximo apenas para denegri-lo, ainda que em pensamentos. Essa é a proposta de uma refeição ágape, imaginada pelo filósofo suíço radicado na Inglaterra – e permanente agent provocateur - Alain De Botton, no seu mais recente livro, Religião para ateus, lançado no Brasil pela editora Intrínseca. E é o que eu chamaria de jantar inesquecível. Divertido, surpreendente, perspicaz, mucho loco e impraticável (impraticável, mesmo?) são adjetivos que cabem ao livro, cuja idéia central é a de tomar emprestadas, para a sociedade laica, algumas das práticas das religiões organizadas. Nos países de língua inglesa o livro causou cisões e debates acalorados. Alguns ateus, para minha surpresa, o classificaram entre “ridículo” e “traidor”. Achei particularmente interessantes os malabarismos mentais do autor, um ateu declarado, no sentido de proporcionar encontros entre as pessoas que pudessem amenizar alguns males da sociedade secularizada, como o isolamento. Ele está absolutamente correto em sua percepção de que nossa sociedade é centrada no culto ao sucesso profissional, o que faz com que as pessoas que dedicam sua vida a cuidar da família, dos filhos e, quando eles crescem, dos pais idosos, sejam vistas como perdedoras. Nessa categoria, se não estou equivocada, a presença feminina é de 99%. Não admira, diz o autor, que as pessoas abram mão de tudo para investir em suas carreiras profissionais. Não se trata, em muitos casos, apenas de assegurar o sustento para subsistir fisicamente, mas de assegurar o êxito afetivo através da atenção da qual necessitamos imensamente para subsistir emocionalmente. Daí a idéia de uma refeição, de um encontro ágape (que significa amor, em grego, e foi o nome dado às primeiras reuniões de natureza eucarística), no qual as perguntas utilizadas para que as pessoas venham a se conhecer não sejam as costumeiras “O que você faz?” e “Onde seus filhos estudam?”, questionamentos que visam nos encaixar em determinada prateleira social, mas sim aqueles que possam revelar de nossa fragilidade e insanidade compartilhadas. Alguém não gostaria de compartilhar sua insanidade sem ser julgado? Uma vez revelados e acolhidos, os monstros que nos habitam diminuem de tamanho, podendo até virar bichinhos de estimação. Num momento de empolgação estive até doidivando em realizar um jantar ao estilo ágape, aqui em casa. Mas pensei em dar uma aperfeiçoada na proposta do autor e, fiel aos pressupostos do meu herói Humphrey Bogart, oferecer tequila ou cachaça aos participantes, já na porta de entrada. Explico. Segundo Bogart a humanidade estaria algumas doses (de uísque, provavelmente) atrasada, ou seja, abaixo do nível desejado para que cada um vivesse bem consigo e com os outros. Então, duas doses de tequila logo na entrada do recinto possivelmente já garantiriam um jantar ao estilo ágape mesmo para o mais acanhado entre os convivas, não? Seria uma idéia para tentar arrancar a camisa de força da profissão. É que eu adoraria participar dessa versão adulta de Verdade ou Conseqüência, jogo da minha adolescência, só que sem a conseqüência e sem o julgamento de valor por parte dos pares. Mas temo que o pessoal nunca mais volte aqui em casa. Quem sabe pela tequila.