segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Da camaradagem

“Como homem, meu sistema default é ‘estou sempre certo’. Mas depois que me casei mudei o default para ‘minha mulher está sempre certa’.” Má idéia, meu querido. Um dia, inevitavelmente, o sistema não iria agüentar. A aniquilação nunca é um bom elemento na construção do companheirismo. Nem a aniquilação do outro (estou sempre certo), nem a de si mesmo (ela está sempre certa). Embora boba, a piadinha acima funciona e está no livro Beber, Jogar, F@#er, publicado no Brasil pela Planeta, uma bem humorada contrapartida masculina ao best-seller Comer, Rezar, Amar, que conta a trajetória pessoal da americana Elizabeth Gilbert em busca de novos significados para sua vida. Já Beber, Jogar, F@#er conta a história de um homem recém divorciado em busca de uma nova vida, embora esse protagonista e suas aventuras sejam fictícias. E, por se tratar de ficção sob o ponto de vista masculino num mercado onde a maioria dos leitores são do sexo feminino, ficcionaram demais. Foram aparadas todas as arestas do protagonista que pudessem fazer as leitoras do livro chamá-lo de canalha e outros insultos. Criaram um cara tão legal, tão corretinho, mas tão gente boa, que é completamente inverossímil. Isso chateou a leitora aqui, que estava buscando uma visão de mundo do ponto de vista masculino sem enxertos de contos de fadas. Então radicalizei. Como continuava interessada em ler aventuras vividas por homens, escolhi “Vida”, a autobiografia do lendário guitarrista dos Rolling Stones, Keith Richards, publicada pela Globo Livros. Uau. Um porco espinho não apresentaria tantas “arestas” e ao protagonista podem ser enfileirados insultos dos mais diversos, com exceção de covarde ou preguiçoso. Como mulher, senti inveja desses caras nos tempos anteriores ao peso das drogas afundar completamente o barco. Inveja, em primeiro lugar, da liberdade enorme de quem vai pelo mundo com a cara e a coragem, sem o permanente temor de ser assediado ou agredido, o que ajuda muito a ser corajoso. E em segundo lugar, inveja da imensa camaradagem entre os rapazes. O grau de intimidade, o foco na música, a confiança mútua, mesmo rolando ciúmes e grosserias, coisa que os homens tiram de letra e nós, mulheres, definitivamente não. E é aí que voltei ao Beber, Jogar, F@#er, para compreender plenamente o que o protagonista buscava bebendo, jogando e mesmo fazendo pouco uso do terceiro verbo do título. O que ele havia perdido durante seus anos de casado era justamente a camaradagem, o elo de ligação com outros homens por motivos não relacionados a trabalho ou família. E, por isso, ele havia perdido um bocado de sua alegria. Compartilhar atividades é, sabidamente, uma forte característica da formação da amizade masculina, enquanto que a feminina se dá pelo estabelecimento de um diálogo íntimo. A paixão e o ideal de romance – o tal encontro de duas metades – tende a isolar os homens (e as mulheres também!) de seus pares e criar uma ilusão de que é possível encontrar plena realização apenas no convívio familiar e amoroso. Mas é possível que a camaradagem, as brincadeiras e a atitude de aceitação geradas pelo convívio com outros homens não possam ser substituídas pela convivência com uma mulher, por mais amorosa e companheira que ela seja. E, cá para nós, será que essa substituição é necessária? Essa fusão das duas metades beneficia alguém? Ou há vários rios de afeto em nossos peitos que correm bem felizes em leitos separados sem que um ameace o outro

Raiva na estrada

De manhã cedo, sinal fechado. O tempo exato para passar o batom, imagino. Volta e meia me acomete essa coisa de sair sem batom e só passá-lo quando estou no carro. Manias, vai saber. Remexo a bolsa apressadamente, agilidade, vamos lá, vai dar tempo. Pelo espelho retrovisor vejo que o motorista do veículo atrás do meu me observa enquanto passo o batom. Guardo-o, estou pronta para acelerar no momento exato em que o sinal troca para o verde. No mesmo momento exato em que o motorista de trás buzina. O menor espaço de tempo, dizem, é o aquele que cabe entre abrir o sinal e o cara do carro atrás do seu enfiar a mão na buzina. Por que nosso amigo buzinou, se não houve atraso no movimento do meu carro? O que o perturbou? Podemos especular. Ele pode sofrer de Inveja do Batom. Não pode usá-lo, somente em momentos carnavalescos quando sai fantasiado de Vadinho (o marido farreador de Dona Flor e seus dois maridos, lembram?) e lá sei eu o que projeta no batom, de forma que sua visão o impaciente assim. Não é comigo a questão dele, é claro, é com o batom. Prováveis problemas de gênero à parte, creio que também acomete o motorista em questão a ansiedade, essa nossa companheira da velocidade da conexão, da aceleração neurótica característica do tempo em que vivemos. Há algumas semanas li trechos de um estudo sobre “Road Rage”, no site da Polícia Rodoviária de Washington, nos EUA. A presença da agressividade na maneira como você dirige pode ser detectada em alguns hábitos que nos parecem inócuos, mas são muito comuns, tais como: condenar mentalmente ou ter pensamentos violentos em relação a outros motoristas; condenar verbalmente outros motoristas, mencionando-os a outros passageiros que estejam em seu veículo (falando sozinho também conta, não?); não obedecer a certas regras do trânsito porque você não concorda com elas, como usar o cinto de segurança. De acordo com o artigo, a partir daí é tudo ladeira abaixo, a raiva já tomou conta de você que em breve estará ultrapassando sinais vermelhos, “costurando” no trânsito e freiando desnecessariamente com o objetivo de convencer o motorista do carro de trás a manter distância do seu (Que coisa mais neurótica! Alguém realmente faz isso?). Ah, o trânsito, esse desmascarador de nossas boas referências acerca de nós mesmos. Como é fácil criarmos ilusões positivas a nosso respeito, especialmente nas redes sociais. Quer saber um pouco mais sobre como uma pessoa se comporta em situação de stress? Sugiro deixar o Facebook de lado, sentar no banco do carona e largar ela a dirigir – não precisa ser numa metrópole, pode ser em Passo Fundo mesmo – no horário do rush. Para completar o quadro, dê um compromisso à pessoa, um local ao qual ela deve chegar em tantos minutos. Não necessariamente num horário impossível, mas um pouco apertado. Lá se vai a máscara de pessoa serena, equilibrada e tolerante. Não sou das piores, mas já vi isso acontecer comigo várias vezes e em mais de uma ocasião agradeci aos céus por não possuir porte de arma ou um bastão de baseball no banco traseiro. Dia desses cogitei instalar uma câmera no carro para me filmar, registrar aquilo que os outros e, principalmente, minha filha vê. A idéia é assistir depois de um dia agitado e ver se a vergonha faz com que me eduque na direção de ser uma pessoa realmente – como oposta a virtualmente – paciente e menos ansiosa.

A escolha

É triste ver o olhar embaçado dos meus cães a me mirar. Catarata, dizem os veterinários, tanto no macho quanto na fêmea. Ao completar onze anos, os dois têm lá seus achaques. Dores nas costas e inflamação no ouvido do macho, provável tumor linfático e descompasso cardíaco na fêmea. Tomam seus remédios e vez por outra arrastam o passo, parecem cansados da vida. A vontade de latir não perdem nunca, especialmente se o inimigo é o caminhão do lixo. Embora vivam soltos em casa, também não perdem a gana de escapulir portão a fora, tomar a rua, donos de seus focinhos. Dia desses fugiram em companhia da mais nova, uma vira-latinha que nem completou dois anos, a vivacidade e disposição em pessoa. Ou melhor, em forma canina. Preocupada com a saúde dos dois velhuscos resolvi sair a catá-los, embora tenha certeza de que sabem voltar para casa, já que essa não é sua primeira escapulida. Encontrei-os num terreno baldio próximo, sobre o qual erguem-se morros e mais morros de terra bem vermelha. Pois bem, a subir e a descer esses morros estavam meus três cães, correndo parelhos, numa farra tremenda. Cavaram buracos, rolaram na terra, provocaram uns aos outros para início de nova correria, felizes da vida. Nenhum velho, nenhum doente ou cansado naquela cena. Fiquei ali olhando, pensativa. Os cães amam ser livres e poder brincar, embora necessitem muitíssimo de proteção e pertencimento a uma matilha. São necessidades com as quais posso me identificar, talvez daí meu imenso apreço por eles. Por isso me questiono se, doente, cegueta, meio surda e desdentada, sem poder correr, colocar a cabeça para fora da janela do carro em movimento e latir para o lixeiro, eu quereria continuar viva. É claro que o cão não tem consciência de sua finitude e permanece vivo devido à insistência de nossos cuidados. Mesmo assim, me pergunto se estar vivo valeria a pena para ele e não só para mim, que postergaria sua morte para evitar meu sofrimento. O Conselho Federal de Medicina publicou resolução visando, a meu ver, ampliar o debate e a consciência sobre como vivemos nossa morte. Em caso de doença terminal irreversível cabe ao paciente, enquanto estiver lúcido, decidir se opta por tratamentos para prolongamento da vida ou não. Esses tratamentos muitas vezes pioram a qualidade da vida que resta sem necessariamente prolongá-la por um período significativo. Jamais faria isso com meus cães. Gostaria que eles morressem cercados de carinho, de preferência em casa e sem dor. Não é isso que desejamos a quem amamos? A essa escolha, seja pela continuidade do tratamento ou adesão a cuidados paliativos, é dado o nome de “testamento vital”. Naturalmente assumo a responsabilidade pelo testamento vital dos animais sob meus cuidados porque nenhum deles é o Stephen Hawking, para o qual o desconforto físico é superado pelo trabalho de um cérebro que possui consciência, planos para o futuro e, diga-se de passagem, se dedica a estudos geniais. Ao cientista brilhante acederíamos sem questionar sua vontade, fosse ela prolongamento doloroso da vida ou aceitação do curso natural da doença. Por que não faríamos o mesmo quanto às decisões dos que nos são próximos? A quem interessaria ver seu familiar vivo, sofrendo a exaustão, preso numa cama, isolado numa UTI, até o último suspiro? Tememos a ausência definitiva justamente porque não sabemos o que fazer com a presença passageira. A escolha de uma vida boa e uma morte boa. Não é pedir demais, para meus cães, para mim e para os meus.

domingo, 26 de agosto de 2012

Sujando as unhas

“Se você pintar as unhas dela de vermelho eu não pago” teria dito o marido à pobre manicure, encurralada em meio a uma briga que definitivamente não era sua. Ele só aceitava um rosinha pálido. A manicure me conta que isso não é incomum. Há maridos que proíbem suas esposas de pintar as unhas de vermelho e outros que não aceitam esmaltes de cores fortes. Estarrecida, encontro dificuldade de conseguir ordenar o pensamento diante de um relato desses. Há, em primeiro lugar, a proibição. Uma mulher é proibida por um homem que se julga em condições de fazê-lo. Ela, aparentemente, parece crer que deve obedecê-lo. O que é que dá a um homem o direito de proibir um ser humano adulto, responsável e independente de fazer algo, alguém me explica? É um papel em cartório? Anelzinho no dedo? E o que é que faz uma mulher abdicar de seu status de adulta e aceitar ser tutelada por alguém que diz “eu te proíbo” embora esse alguém confie a ela a casa, os filhos e os cuidados para com ele? Um amigo acha que me preocupo demais, pois residem nesses gestos demonstrações de afeto. Eu vejo apenas demonstrações de poder e rastros de um afeto truncado, atemorizado, por isso tão passivo. E não, de jeito nenhum, não acho que isso é amor. Em segundo lugar há a questão do domínio sobre o dinheiro, que é, em realidade, o que empodera um adulto a tutelar outro adulto igualmente livre. Por algum motivo um dos membros do casal parece compreender que a receita que possibilita a ambos viver não foi gerada por esforços conjuntos e sim, apenas por um. Se assim fosse, esse um seria o único dono do dinheiro e determinaria como ele deveria ser gasto. Esse é um comportamento típico dos “arrependidos”. Ele acha que se arrependeu de ter formado, de livre e espontânea vontade, uma família, ora, ora. E agora? Para quem é que ele devolve as crianças e a esposa, como é que volta no tempo para ser novamente senhor do seu tempo e do seu dinheiro? Ah, mas os arrependidos que conheço querem o almoço na mesa. As roupas limpas no armário. E os filhos bem criados de preferência sem que isso lhes cause incômodo. Afinal, gostam de aparecer com a família bonita – sinalizador de realização – em ocasiões sociais. E querem também escolher a cor dos esmaltes de suas mulheres propriedades, além da barra da saia. Na verdade ele não se arrependeu de nada, possivelmente não viveria fora do papel de vítima que é também algoz. Em terceiro, mas de forma alguma menos importante lugar na organização do nosso pensamento, está a questão da COR do esmalte. O que será que leva esse nosso amigo a proibir justamente o vermelho, cor tão sensual, nas unhas da “SUA” mulher? Será que nas outras pode? Que fantasias estarão escondidas aí, que o impedem de vê-la como ser de desejo, capaz de referir à existência de sua sexualidade através das unhas? E há ainda os que surtam com as cores inusitadas e enfeites de toda a sorte, expressões da criatividade feminina. Como é que uma brincadeira – e leia-se brincadeira aqui como sublimação do sexo, uma coisa feliz – feminina causa tanto rebuliço nos sentimentos masculinos? As mulheres se vestem, se maquiam, pintam as unhas para as outras mulheres, dizem por aí. Bem, se for esse o caso, o fato é que o que fazemos com a aparência dos nossos corpos mexe com os homens também. E nesse mexer entram sentimentos de posse saudáveis, como o desejo sexual, mas também de cerceamento e aniquilação. Sinal vermelho forte. Há que arranhar e cavoucar para sair de um buraco desses onde até nossas unhas são limpas das fantasias e quereres que nos fazem mulheres.

Quem voce é

“Você não é o seu emprego. Você não é quanto dinheiro possui no banco. Você não é o carro que dirige. Você não é o conteúdo da sua carteira.” Essas frases são do filme cult Clube da Luta, onde a destruição do papel social desempenhado pelo protagonista é a base de sua completa libertação. É um filme niilista, sem dúvida, e esse é um de seus maiores atrativos. Viver de acordo com seus desejos mais profundos e não conforme as regras da sociedade, quem nunca quis? A destruição das crenças e valores associados às estruturas tradicionais traz em seu bojo a sedutora idéia de liberdade, de não ser mais definido pela família, emprego, religião ou papel dentro da sociedade, mas ser verdadeiramente quem se é. E quem é você? Às vezes acho que passamos a vida procurando resposta para essa pergunta. Até certo ponto o conteúdo da carteira, a escolha do carro, do emprego ou família define quem somos nós. São reflexos – passíveis de interpretações únicas, pois que individuais – de um eu mais privado, mais profundo e normalmente tão pouco visitado que os tais reflexos acabam sendo tomados como o todo. É a tal da persona a que se referia Jung. Mas nos momentos de doença ou de solidão é muito raro que essas manifestações de adaptação ao mundo exterior sejam suficientes para apaziguar-nos e sentimos falta de nós mesmos. Sendo multifacetados, buscamos aqueles pedacinhos coloridos do nosso caleidoscópio que há muito tempo não vêm à luz, soterrados pelas exigências do cotidiano. Acontece que se você tirar um fragmento que seja de um caleidoscópio, ele muda, e seus reflexos não são mais os mesmos. É para não nos esquecermos de nenhum pedacinho das facetas que nos compõem que a artista plástica Keri Smith (www.kerismith.com) insiste que voltemos a brincar. Infelizmente seus livros ainda não foram publicados em português, mas, para quem lê razoavelmente em inglês, vale a pena comprá-los. Através de pouca teoria e muitas atividades práticas essa canadense inspira seus leitores a diminuir o ritmo e a tentar recriar atividades que os absorviam e geravam prazer quando crianças. Passei uma tarde me ensaiando para brincar, pensando e não agindo, tal a montanha de pó que cobre esses fragmentos de mim mesma. Finalmente me encorajei e fiquei atônita ao reavaliar meus interesses. Quisera ter feito isso mais vezes na vida e fundamentalmente ao final da adolescência, temporada de testes vocacionais. Pense em suas brincadeiras de infância. Do que é que você gostava de brincar? De mexer na terra? De explorar a natureza? Você desenhava ou pintava? Quando é que você se sentia mais livre e feliz? Lendo sozinho? Correndo num parque? Competindo de bicicleta com outras crianças? Sente-se no chão. Sirva chá para algumas bonecas. Organize uma partida de futebol de botões (improvise com botões de casaco). Não se importe em se sujar. Silencie seu crítico interior e permita que a atividade o envolva. Segundo a autora, brincar é o principal elemento na descoberta de quem você é. Ao fazê-lo e ao observar a si no ato de brincar, seus mais profundos desejos lhe são sutilmente revelados. E com eles possivelmente parte da resposta à pergunta, quem sou eu, mesmo?

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Injeção na testa

Cada qual com suas aventuras. Pois aos quarenta e cinco anos achei que era hora de ceder ao ditado e tomar injeção na testa. Minto. Não foi bem ao ditado que cedi, uma vez que o procedimento não foi gratuito. Cedi a que, então? A vontade de manter uma aparência jovial. Mas não tenho bem certeza que seja uma boa idéia declarar tal fraqueza (dirão alguns) ou estratégia (admitirão outros) em público. Do leque de mentiras insanas que nós mulheres contamos para manter nosso expediente darwiniano de seleção do macho mais bem qualificado, o desinteresse na manutenção da juventude é um dos hits. Pencas de atrizes e modelos famosas e lindíssimas afirmam nada fazer para manter sua aparência, que se deve a uma boa alimentação. Temos dificuldade de engolir essa por sabermos que já passaram a casa dos quarenta e a dos cinqüenta há muito tempo e, ainda assim, mantêm um frescor que parece inimaginável na amiga que compartilha exatamente da mesma idade da televisionável da vez, empertigada no sofá de seu programa de debates. Ou seja, tais mulheres são milagres da natureza, o tempo as afeta, mas apenas de forma graciosa. Bonito isso, como ficção. Dentre as mulheres que escrevem e as quais admiro, várias alegam não possuir nenhum traço de vaidade, se dizem avessas a imposição da juventude como padrão de beleza – e com elas eu não poderia concordar com mais convicção. Contudo, ao vê-las ao vivo encontrei mulheres de pele bem cuidada, magras, maquiadas, penteadas, unhas feitas, vestidas com uma sensualidade elegante e aparentando ser mais jovens do que são. Sob hipótese nenhuma a figura de uma Amélia, aquela, sem a menor vaidade. Uma mulher de verdade. Surpreendi-me, mas não muito. Afinal, essa é a natureza das pessoas de verdade, especialmente das que se expõem publicamente: querem ser apreciadas e, para as mulheres, o apreço pela beleza é especialmente caro. Gostei de a médica ter dito que perderia a expressão “braba”, em mim, a do cenho permanentemente franzido. Para os míopes como eu, o que é interpretado como mau humor muitas vezes é só cansaço ou falta de lentes. Ocorre de olharmos para alguém numa reunião com cara de profunda irritação – cenho franzido, lábios cerrados – porque na verdade não estamos enxergando muito bem os traços faciais do nosso interlocutor. Agora, não mais. Ares de lago tranqüilo são comigo mesma. Permaneço não enxergando, mas não dá na vista. O que piora um pouco quando as pessoas reclamam que não as cumprimentei. Dificultou explicar que não as vi, mas, enfim, não se pode ter tudo. Como ainda não estou na turma dos que parecem fugidos do Madame Tussauds, me agrada pensar que passei a participar de uma comunidade de gente de aspecto sereno, que intimamente apelidei de os zens do botox facial. Para fins de consumo externo é bem mais rápido do que atingir serenidade interior, admitam. Crescemos em números exponenciais, dentro e fora da TV. Muito em breve seremos incontáveis vovôs e vovós de feições plácidas e sorrisos de Mona Lisa, gente aparentemente muito equilibrada e confiável. Pode chegar para conversar. Só por favor, não se detenha no lampejo insano do olhar.

No banheiro

Banheiro feminino de um grande shopping center na capital do estado. Devido ao horário, início de tarde, razoavelmente cheio. Esperando com minha filha a vez de usar um toalete, vou observando as mulheres que coabitam esse espaço conosco durante alguns (longos) minutos e ouvindo suas conversas. Passado pouco tempo me sinto melancólica e desejosa da existência obrigatória de banheiros só para crianças. Duas moças de terninhos pretos bem cortados vão calçando seus stilettos também pretos, muito altos e elegantes, enquanto guardam suas sapatilhas e tênis em mochilinhas. Em seguida começam por retocar suas pesadas maquiagens com o apuro e a precisão de quem está habituada a fazê-lo com frequência. Na minha imaginação as vejo em seus respectivos ônibus (preconceito?), quase completamente montadas (arrumadas), a caminho do trabalho na loja de grifes na qual permanecerão provavelmente até o fechamento do shopping. Baixo os olhos para meus tênis do tipo Converse e rememoro as tantas vezes em que atendentes com aparência semelhante as dessas moças me avaliaram de cima a baixo já na entrada da loja deixando evidente em seus rostos e atitudes a conclusão de que provavelmente não valeria a pena gastar tempo comigo, no que se refere ao ganho de comissão. Estivesse no lugar delas, pensaria eu da mesma forma? Reconheço que provavelmente estão certas em sua avaliação sobre meus gastos. No espelho seguinte há outras duas moças, adolescentes provavelmente, jogando o jogo do “meu cabelo está horrível”. Funciona mais ou menos assim: cada uma destrata as qualidades dos seus cabelos numa escalada sem fim, sem nunca admitir que, talvez, o cabelo não esteja tão feio assim e nem o da amiga. É quase um monólogo, só que a dois. Uma loira, cabelos até a cintura, uma morena, cabelos até o meio das costas. Lindos, na minha leiga opinião. Uma vez tendo os cabelos escovados, presos, soltos, arrumados com esmero e feroz desmoralização verbal, lá se vão elas porta a fora balançando as madeixas. O jogo “meu cabelo está horrível” tem um concorrente muito forte, que é o “estou gorda” ou “preciso emagrecer”, ao qual se dedicam duas mulheres na fila a nossa frente e também algumas senhoras que ocupam os últimos espelhos ao final dessa área do toalete. Nesse tipo de ritual auto depreciativo geralmente não há consolo que seja aceito. Dicas de dietas, remédios e afins são bem vindos, mas a sugestão, inclusive utilizada por algumas das senhoras, de que você está bonita é recebida quase como um despropósito, por ouvidos moucos e olhares aprisionados ao espelho. Olhar para a interlocutora, somente via espelho. No banheiro feminino a estética impera. E é uma estética feroz. Não há espaço para meios termos, para reflexões equilibradas, para aceitações amorosas da imagem refletida. A imagem de uma mulher que já passou por tanta coisa. Que tem tanto ainda por fazer. Vai ver que essa obsessão pela aparência se deve a estarmos no chamado templo do consumo e há que se sair do banheiro ansiando pelas melhorias que estão expostas em cada vitrine, coisas que ainda não possuímos, soluções para nossos egos maltratados. Cremes para os cabelos, cintas para as barrigas, atendentes que nos pressionam a aspirar à aparência de riqueza, está tudo lá. Basta comprar. E continuar comprando. Até encher de amorosidade (ou seria inveja que buscamos?) o vazio que acreditamos estar no olhar de quem nos vê, na verdade reflexo do nosso próprio olhar severo. Mas é mais provável que o limite do cartão de crédito estoure antes que tal vazio possa ser preenchido.

Um jantar ágape

Você se senta à mesa para jantar com alguns conhecidos e outros nem tanto. A conversa rola amena, primeiramente sobre a refeição em si e, minutos depois da primeira garfada o assunto deriva para “Do que você se arrepende?”, continuando com “Quem você não pode perdoar?” e “De que você tem medo?”. A primeira vista parece ameaçador, mas não há o que temer. Todos ao redor daquela mesa estariam despidos do temor de revelar a si e também da curiosidade maníaca de ouvir o próximo apenas para denegri-lo, ainda que em pensamentos. Essa é a proposta de uma refeição ágape, imaginada pelo filósofo suíço radicado na Inglaterra – e permanente agent provocateur - Alain De Botton, no seu mais recente livro, Religião para ateus, lançado no Brasil pela editora Intrínseca. E é o que eu chamaria de jantar inesquecível. Divertido, surpreendente, perspicaz, mucho loco e impraticável (impraticável, mesmo?) são adjetivos que cabem ao livro, cuja idéia central é a de tomar emprestadas, para a sociedade laica, algumas das práticas das religiões organizadas. Nos países de língua inglesa o livro causou cisões e debates acalorados. Alguns ateus, para minha surpresa, o classificaram entre “ridículo” e “traidor”. Achei particularmente interessantes os malabarismos mentais do autor, um ateu declarado, no sentido de proporcionar encontros entre as pessoas que pudessem amenizar alguns males da sociedade secularizada, como o isolamento. Ele está absolutamente correto em sua percepção de que nossa sociedade é centrada no culto ao sucesso profissional, o que faz com que as pessoas que dedicam sua vida a cuidar da família, dos filhos e, quando eles crescem, dos pais idosos, sejam vistas como perdedoras. Nessa categoria, se não estou equivocada, a presença feminina é de 99%. Não admira, diz o autor, que as pessoas abram mão de tudo para investir em suas carreiras profissionais. Não se trata, em muitos casos, apenas de assegurar o sustento para subsistir fisicamente, mas de assegurar o êxito afetivo através da atenção da qual necessitamos imensamente para subsistir emocionalmente. Daí a idéia de uma refeição, de um encontro ágape (que significa amor, em grego, e foi o nome dado às primeiras reuniões de natureza eucarística), no qual as perguntas utilizadas para que as pessoas venham a se conhecer não sejam as costumeiras “O que você faz?” e “Onde seus filhos estudam?”, questionamentos que visam nos encaixar em determinada prateleira social, mas sim aqueles que possam revelar de nossa fragilidade e insanidade compartilhadas. Alguém não gostaria de compartilhar sua insanidade sem ser julgado? Uma vez revelados e acolhidos, os monstros que nos habitam diminuem de tamanho, podendo até virar bichinhos de estimação. Num momento de empolgação estive até doidivando em realizar um jantar ao estilo ágape, aqui em casa. Mas pensei em dar uma aperfeiçoada na proposta do autor e, fiel aos pressupostos do meu herói Humphrey Bogart, oferecer tequila ou cachaça aos participantes, já na porta de entrada. Explico. Segundo Bogart a humanidade estaria algumas doses (de uísque, provavelmente) atrasada, ou seja, abaixo do nível desejado para que cada um vivesse bem consigo e com os outros. Então, duas doses de tequila logo na entrada do recinto possivelmente já garantiriam um jantar ao estilo ágape mesmo para o mais acanhado entre os convivas, não? Seria uma idéia para tentar arrancar a camisa de força da profissão. É que eu adoraria participar dessa versão adulta de Verdade ou Conseqüência, jogo da minha adolescência, só que sem a conseqüência e sem o julgamento de valor por parte dos pares. Mas temo que o pessoal nunca mais volte aqui em casa. Quem sabe pela tequila.

domingo, 15 de abril de 2012

O preço

De vez em quando, numa mesa de jantar, acontece de um casal fazer o levantamento de suas perdas e ganhos. Raramente esse balancete se refere à vida do casal como um todo, sendo usualmente começado por um dos indivíduos que, seja por que motivo for, bebida inclusa, resolve deitar os olhos sobre o passado e refletir sobre sua vida. Inevitavelmente a relação entra nessa contabilidade. Quando a dupla tem um relacionamento de muitos anos a rememoração das perdas passadas não raro começa com um queixume do tipo “não fiz tal coisa porque ele/ela não deixou” e só tende a aumentar, superando em muito os ganhos. Se o déficit for grande, o negócio, ou a noite pelo menos, pode terminar mal.

Todo o relacionamento humano – o amoroso inclusive, para espanto de muitos – tem um custo embutido. Esse custo, sobre o qual geralmente não falamos em francas palavras a não ser em ruidosas ocasiões quando a relação corre o risco de se romper, vai acumulando e se modificado com o passar dos anos. Alguns itens saem da lista de débitos e passam a fazer parte da coluna de créditos, como aquela vez que deixei de fazer um voo de parapente com instrutor devido à insistência do marido. Depois vim a descobrir não apenas que o voo de parapente com instrutor é ilegal, mas também que são alarmantes as estatísticas de quedas em voos dessa natureza. Há, também, itens fazem o caminho inverso, quando descobrimos que talvez tenhamos partilhado de um desejo que nunca fora legitimamente nosso apenas para a manutenção do casal e que essa decisão nos custou afetivamente mais do que estaríamos dispostos a investir.

Um dos valores mais altos e dos mais comuns a ser pago dentro de um casamento longevo é a permanência enquanto congelamento do sujeito numa determinada época. Algumas pessoas reagem muito mal a mudanças e surpresas e encaram qualquer alteração nos interesses e no comportamento do companheiro ou companheira como uma ameaça de perda. Como se o engessamento da previsibilidade não fosse matar o envolvimento amoroso de qualquer forma. É a teoria do pássaro na mão, ao invés de voando. Ainda que triste, silencioso, morto mesmo, o pássaro está preso entre os dedos, é uma propriedade. Já um pássaro voando é uma liberdade e a liberdade do outro nos remete a nossa mesma. Liberdade que talvez nem queiramos por não sabermos o que fazer com ela. Então, embora pareça paradoxal, um membro de um casal pode tolher as asas do outro para evitar fazer uso de suas próprias. Fecha-se um círculo de proibições, de sonhos e fantasias não realizados, de mesmices e rotinas que podem vir a ser estranguladoras quando a velhice se aproxima e a frustração acumulada nos torna mais amargos.

É utópico um casal sentar e perguntar com franca gentileza se os custos do relacionamento não estão pesando demais para um ou outro? Aguentaríamos a sinceridade das respostas? Teríamos coragem de fazer o inventário dos nossos sonhos não realizados e contrapô-los aos ganhos que o convívio amoroso nos proporcionou? A mera ideia do arrolamento de perdas e ganhos arranha o ideal de amor romântico envergado por muitos no ocidente como uma espécie de burca emocional. Parece que nos inscrevemos num debate já em andamento: a burca, ao fim e ao cabo, protege ou limita?

Tique, taque

Eu costumava cantar “time, time, time, is on my side. Yes it is!” (O tempo está ao meu lado. Ele está sim!), refrão de uma música dos Rolling Stones. Eu era jovem e cantava com absoluta convicção. Essa certeza, contudo, foi se esvaindo por esses dedos que contam o passar dos anos, juntamente com outras tantas verdades absolutas da juventude. Por alguma razão, ao acumularem-se os anos cresce o número de incertezas. As convicções vão rareando e sobram apenas algumas poucas, essenciais, e que ainda assim volta e meia passam pelo escrutínio da dúvida. O que é bom, contém a egolatria e mantém a sanidade, principalmente em se tratando do tempo, um dos deuses mais lindos segundo o Caetano. Mas até o próprio Caetano – na música Oração ao Tempo – tenta entrar em acordo com ele, exemplificação da nossa dificuldade em fazê-lo.

Acreditar ter o tempo sob seu comando é uma ilusão grandiloquente tola. Lutar contra o tempo, uma batalha perdida que deixa gosto amargo no corpo. Segundo Caetano o tempo é “compositor de destinos” e “tambor de todos os ritmos”, o que me leva a devanear sobre a necessidade de entregar-se ao tempo como faz um cão adormecido sobre o sofá em plena manhã de outono. Mas não somos cães e me dou conta que estarmos à mercê do tempo também não é uma verdade absoluta, porque nossos sentimentos parecem influenciar a forma como o vivenciamos, quase como se ele não fosse o perene e inalterável passar dos segundos, mas como se existissem vários tempos dentro de nós. Talvez seja minha relação com o tempo que não é normal. O tempo, há tempos eu acho, não me parece linear e paulatino, mas absurdamente acelerado e escorregadio, alternando essa velocidade incompreensível com momentos de tal imobilidade que chego a jurar que está se mexendo para trás, retornando, como se o Super-Homem tivesse feito a terra girar em sentido contrário, alterando sua rotação e, assim, o tempo. É, eu sei que isso não é possível, mas nos quadrinhos parecia uma ideia bacana.

Possivelmente são os filhos, ou a vivência de crianças crescendo ao nosso redor, que nos fazem enxergar com mais clareza a passagem do tempo externo. No entanto, enquanto são pequenas as crianças podem passar de verdadeiros buracos negros que sugam as vinte quatro horas do dia, reduzindo-o para três ou quatro, a imobilizadores dos relógios, quando você está contando os minutos para liberar uma criança que está aos berros na cadeirinha de pensar. (Provavelmente a criança, como os adultos, não pensa quando está aos berros. Não sou a melhor consultora sobre como se usa a cadeirinha de pensar.) Os hospitais também são lugares excepcionais para compreendermos o gerenciamento escorregadio do tempo e não apenas quando estamos internados. A perplexidade diante de uma mudança brusca da nossa vida em questão de minutos nas emergências e o estancamento absurdo do relógio que consultamos compulsivamente na sala de espera dos centros cirúrgicos nos revela da desarmonia entre o tempo interior e o exterior e da insubmissão de ambos a nossa vontade.

Enquanto releio esse texto fico sabendo da morte do Millôr Fernandes, um pensador essencial na minha juventude. Há poucos dias morreu um humorista presente na minha infância, Chico Anysio. O tempo interno inveja o cão dormindo sobre o sofá. Atrás do sofá, emoldurado na parede, o tempo externo golpeia baixinho meu pesar: tique, taque.

quarta-feira, 14 de março de 2012

Morno

Acho que foi o Millôr quem primeiro disse algo na linha de “se sair por aí sorrindo, não se admire de te jogarem pedras”. Ele tem razão. Certa discrição se impõe no caso da felicidade, como no da infelicidade, quando se trata de demonstrações públicas. Aparentemente a convivência em sociedade exige um meio termo na manifestação de sentimentos. Alegrias e tristezas sinceras podem afastar as pessoas de você porque evocam nelas sentimentos que possivelmente não têm como suportar. Parece estranho? Pense bem.

Com certeza você já viveu situações nas quais foi preciso tomar cuidado com sua cara de felicidade para não magoar os outros. Um dos motivos pelos quais as pessoas não aturam por muito tempo a amiga radiante é que ela não rende conversa, não rende uma boa fofoca da qual se possa sair com um sentimento de superioridade. É preciso um marido do qual se possa falar mal, duma atitude inadequada, de uma roupa inapropriada, mas a tal Fulana, sempre numa boa, faz você até se sentir meio culpada de falar mal dela. Fazer o que? O assunto acabaria tendo de derivar para a política, para a economia, para leituras, ou filmes e música ou outros acontecimentos da vida pessoal das participantes da roda de conversa e isso não necessariamente cria o profundo elo de ligação que vem de você falar mal de alguém, em grupo, e ir embora com aquela certeza de que todas ali são melhores do que a que está ausente, aquela de quem se fala, a que tem problemas piores do que os seus, enfim. Sartre disse que “o inferno são os outros”, mas, nessas situações, o céu é o outro no inferno. O outro está mal, logo, não estou tão mal assim. Nem tão gorda. Nem tão mal amada. Tenho meus pares e eles me reforçam. Pelo menos até que eu saia da sala.

Se for assim, a tristeza dos outros deveria ser muito bem vinda, pois nos proporcionaria a massagem no ego que a fofoca pode criar. Mas fofocar sobre uma pessoa que destemida e sinceramente lhe contou suas tristezas, a princípio também não rende muita conversa, mas certo constrangimento coletivo. Melhor diagnosticar rapidamente o amigo como desequilibrado e listar os erros que ele cometeu para estar naquela situação ou gargantear sobre como você resolveria os problemas que não lhe afligem. Somos experts, homens e mulheres, em resolver problemas que não os nossos.

O falecido psicanalista José Ângelo Gaiarsa certa vez escreveu que “o medo de ser falado, fofocado, é com certeza o mais frequente motivo de supressão de nossos pensamentos e desejos pessoais”. Acontece que a fofoca não cerceia apenas para fora de nós mesmos, mas também e fundamentalmente para dentro. Assim, na esperança de fazermos amigos e influenciarmos pessoas – se me perdoam a pequena ironia com o nome do famoso best-seller – muitas vezes nos comportamos de forma amena, civilizada, sem lágrimas ou gargalhadas, uma máscara de simpatia e equilíbrio. Aos íntimos, se tivermos sorte de os termos verdadeiramente, reservamos nossas pequenas e grandes loucuras.

segunda-feira, 12 de março de 2012

Miragem

Byron, a quem secretamente apelidei Lord Byron, tem vinte e dois anos de idade e é Chefe de Trapézio num hotel da Bahia pertencente a uma grande rede de resorts. Parte das responsabilidades de chefe inclui dançar e representar todas as noites nos pequenos shows que o Village obrigatoriamente deve oferecer, além de zelar pela segurança de adultos e crianças que buscam aulas de trapézio e afins. Há dias observo o infatigável jovem australiano formado em Circo, Teatro e Dança desempenhar de forma competente e madura tudo o que lhe é solicitado, mesmo estando cansado. Trabalhando há três anos nessa rede internacional, ele já passou por três países, ou seja, três villages, e sua meta é essa, conhecer o mundo trabalhando enquanto jovem. Curiosa, não pude deixar de lhe perguntar como pode ser tão independente e responsável com apenas vinte e dois anos.

Caçula numa família de classe média com três filhos homens, Byron começou no trapézio aos cinco anos de idade. Aos quatorze já era instrutor. Durante o último ano do equivalente ao nosso Ensino Médio percebeu que realmente desejava trabalhar em circo e conhecer muitos países. Sua primeira providência foi conseguir um emprego nos Estados Unidos e ir para lá, ao completar dezoito anos. Um ano depois voltou e ingressou na empresa onde hoje trabalha, tendo galgado o posto de Chefe de Trapézio e sendo um dos homens de confiança de seu superior imediato, o atual Chefe do Village, um canadense na casa dos quarenta anos.

Durante nossa conversa comento que muitos de nós, brasileiros, talvez nos apeguemos demais aos nossos filhos roubando-lhes a construção da independência, embora sejamos amorosos e bem intencionados. Ele parece concordar e afirma que os pais o ensinaram a desempenhar quaisquer atividades com seriedade e apóiam suas decisões profissionais. Está claro que realizaram um bom trabalho. Brinco sobre a situação da mãe, única mulher numa casa cheia de homens. Ele então me conta que os pais, ambos professores do Ensino Superior, saíam para trabalhar deixando-o ao encargo dos irmãos mais velhos que não raro lhe agrediam fisicamente por se recusar a obedecê-los. Acha natural e culpa a si mesmo por ter sido “irritante” quando pequeno. Reflito, silenciosamente, sobre a influência das experiências que levaram esse australiano de olhos azuis a querer provar-se forte, inclusive fisicamente.

Deixo minha filha na fila da corda bamba e saio caminhando na corda bamba dos pensamentos de mãe: será que é apenas na adversidade que o ser humano cresce? Pois se assim for, a amorosidade pode ser vista como impeditiva. Os que acreditam que “antigamente é que era bom” sem dúvida afirmarão que sim, que atualmente as crianças crescem cercadas de cuidados excessivos e que nem se pode dar-lhes umas boas palmadas para corrigi-las. Estamos criando uma geração de incapazes. É isso, então. Simples. Basta fazer da casa dos pais um ambiente desagradável o suficiente para que a criança ou o adolescente não queira permanecer ali de jeito nenhum e ele será obrigado a amadurecer. Caberia ajustar os níveis de maus tratos para evitar que, ao invés de ajudar no crescimento, se criasse um adulto alquebrado e incapacitado emocionalmente. Fácil, não?

Ou, talvez, em algum oásis escondido por um véu de enganos, bem no meio do caminho entre o apego infantilizador e o apelo da surra, haja um espaço para a criação afetuosa dos filhos num ambiente familiar seguro e respeitoso de suas individualidades que os tornem, oxalá, maduros e independentes. Miragem? O tempo no-lo dirá.

quarta-feira, 7 de março de 2012

Bias

A pedidos, volto a refletir sobre os jovens e o exercício da sexualidade, dessa vez pensando mais sobre os meninos. Há duas semanas elenquei algumas ideias para conversarmos com nossas filhas, primas, sobrinhas e mesmo amigas na esperança de que nunca venhamos a ser vítimas de abusos sexuais no contexto da balada, onde rola muita bebida, muita droga e muita ansiedade de provar e de se provar.

Sobre a ansiedade na balada, de provar, de experimentar coisas novas, de transcender os limites da regrada vida diurna, de aventurar-se, bem, isso faz parte do esperado pela maioria dos jovens que saem à noite. Se o objetivo fosse ficar confortável, aninhado com um computador ou livro no colo ou em frente a TV, eles ficariam em casa. Mas isso não significa que o baladeiro vá se atirar do alto de um despenhadeiro, metafórica ou literalmente, a não ser nos casos em que a capacidade de preservação de si mesmo esteja fraquejando.

Um dos fatores que complica a equação da experimentação versus autopreservação é a ansiedade de se provar. E nisso, seja por questões culturais, seja pela testosterona correndo nas veias (ou um mix dos dois) os meninos ainda são campeões, embora as meninas pareçam estar cada vez mais ansiosas de se provarem sexualmente desejáveis e ativas. Então, possivelmente a coisa mais importante que eu teria a dizer para um garoto sexualmente ativo e emocionalmente minimamente saudável – ou seja, que não tenha sido agredido no ambiente familiar a ponto de nutrir ódio pelas mulheres – que vai para a balada é: desista de se comparar.

Se a intelectual norte-americana Camille Paglia chegasse a ler esse conselho ela com certeza diria que estou pedindo demais e que se essa ideia fosse levada a sério a roda ainda não teria sido inventada. Compreendo. A competição é fundamental para a ampla maioria dos meninos e inclusive forja laços de amizade, além de ser uma força que faz o mundo girar. No entanto, a roda já foi inventada e o índice de mortalidade dos jovens brasileiros do sexo masculino por causas externas é quatro vezes maior do que o feminino, segundo dados do IBGE, e esse número só tem crescido. Por isso é fundamental educarmos jovens que sejam suficientemente seguros de si a ponto de evitar ciladas onde precisem se machucar e agredir a outros com o objetivo de se provar para os demais do seu grupo.

Todos os excessos, de bebida, de velocidade, de uso de drogas, de sexo sem camisinha e até mesmo sem consentimento, em sua maioria são, salvo casos de psicopatia, resultado de insegurança. Instantâneos de um menino tentando se provar homem, nem que para isso ele renuncie a hombridade e decaia ao nível da selvageria. Os meninos anseiam por atenção. Imaginem, então, a volubilidade de quem sai ao mundo apenas com a meta de vencer, sem parâmetros que não os externos.

Por serem do sexo masculino, e por possuirmos uma visão romantizada das capacidades inatas dos homens, muitas vezes esperamos que os meninos compreendam a vida sozinhos e pouco conversamos com eles sobre quais são as premissas básicas do respeito por si e pelos outros. Tampouco abundam diálogos sobre sexualidade para além do discurso sobre o uso da camisinha como, por exemplo, perceber se uma relação é saudável ou não. Ou sobre o direito de não se sentir constrangido a ter uma relação sexual apenas por que alguém está dando mole ou para se provar aos demais. Há um perigoso bias quando se trata de educar os meninos sobre comportamentos que a família julga adequados e sobre o que se espera dele como jovem sexualmente ativo.

Raramente explicitamos aos nossos filhos o que compreendemos como o comportamento de um homem honrado na sua vida privada, apenas no campo do trabalho. Depois nos assustamos ao descobrirmos que um profissional bem sucedido e no qual confiamos é um desequilibrado no ambiente familiar. Será que acreditamos que apenas às meninas a construção desses parâmetros se faz necessária?

domingo, 22 de janeiro de 2012

BBB

Não assisto o BBB, de jeito nenhum, propositadamente. Minha alienação é customizada e só assisto o que me interessa na televisão, como na internet. Acho maravilhoso viver numa época em que pagando o (alto) preço, seja possível selecionar seu próprio escapismo dentre um amplo leque de opções, uma vez que abundam programas nem sempre construtivos.

Contudo, nessa semana pareceu impossível escapar da "onipresença" do BBB, mesmo sem assisti-lo. No momento em que escrevo ainda não está confirmado nem negado o possível estupro de uma das participantes. É aterrador. As circunstâncias que envolvem o suposto estupro o tornam particularmente repulsivo uma vez que, embora as imagens não sejam explícitas, tenha sido televisionado ao vivo em rede nacional após uma festa na qual ambos, vítima e perpetrador, consumiram grandes quantidades de álcool. A existência de uma política de parte da emissora que promove o show em questão no sentido de incentivar o consumo excessivo de álcool dentre os participantes para que esse sirva de combustível na busca por maior audiência, caso verdadeira, trafega entre o abominável e a ilegalidade.

Diante do horror, opto aqui por fazer a Pollyanna e jogar o “jogo do contente”, ou seja, tentar vislumbrar algo de positivo em meio à desolação. As redes sociais estão saturadas de comentários sobre o episódio e torço, freneticamente, para que se teça um debate não apenas sobre a veracidade e culpabilidade desse possível estupro, mas sobre a necessidade de se evitar futuros abusos. Arrisco listar algumas idéias.

Desejo ardentemente que ao observarmos o ocorrido nos lembremos de nossas filhas, adolescentes e jovens adultas, que precisam ser empoderadas para estabelecerem seu lugar no mundo e, portanto, também o papel de protagonistas de sua vida sexual. Às nossas filhas precisamos alertar, com clareza, do perigo de se embarcar numa aventura sexual depois da ingestão de álcool. A elas precisamos ensinar sobre o enorme risco que é a perda, promovida pelo álcool, do verdadeiro protagonismo. A liberdade que a racionalidade assegura termina por ser substituída por um falso protagonismo, que é apenas a ausência de inibições, acompanhada da incapacidade de pensar de maneira auto protetora com clareza. E pensar em sua própria proteção é fundamental para uma mulher que vai para a balada.

As jovens precisam saber que têm a liberdade de pegar um táxi de confiança na madrugada, cujo telefone esteja armazenado em seu celular, ou a liberdade de ligar para os pais, mas que, sob hipótese alguma, devem pegar carona de estranhos ou de conhecidos que beberam. Elas precisam ter condições de pagar sua própria bebida (ou sustância recreativa da qual pretendem fazer uso?) e não aceitar gentilezas de terceiros. E precisam, ainda, saber que tem todo o direito de se vestir e de se portar como quiserem e mesmo de ficar bêbadas se assim o desejarem, sem que isso implique num convite a serem abusadas sexualmente ou de outra forma. Mas, e isso é fundamental que elas saibam, esse mundo é injusto e há comportamentos que as colocam em situações de risco das quais profundas escaras podem surgir, acompanhadas, infelizmente ainda, de pouca compreensão por parte de certos setores da sociedade.

Por último, mas não menos importante, todas nós mulheres, independentemente da idade, precisamos compreender completa, total e irrefutavelmente que sexo bom, benéfico e bonito, é sexo consensual, esse sim, um BBB.

Sobre a educação dos meninos, fica para uma outra coluna, por questão de espaço.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Contrariando os princípios

O Millôr Fernandes, que sabe muito de quase todas as coisas, é quem disse que se seus princípios são rígidos e inabaláveis, você, pessoalmente, já não precisa ser tanto. Assino embaixo. Contrario meus princípios com frequência a guisa de viver bem. Atualmente cheguei ao cúmulo da contradição, tendo adotado um programa de exercícios físicos.

A questão é que arrumei um probleminha na coluna que gerou imensa dor. E a dor, tal como a paixão, tem o poder de extrair de nós juras sinceras e profundas do tipo Scarlet O’Hara no alto de um morro vendo sua Tara (a fazenda!) devastada. Mas a gente não tem a mesma “tara” que a Scarlet O’Hara e normalmente as juras de paixão passam quando o fogo começa a arrefecer. Contudo é possível que a jura realizada quando você está chorando de dor – ou de fome e de raiva, no caso da nossa aguerrida personagem – tenha um efeito mais duradouro. De onde os exercícios.

Sou daquelas pessoas que não confessam, mas para as quais se exercitar é contrariar um princípio pessoal importante. É um princípio que se origina de certa onipotência, a de que damos conta de tudo, nada de realmente grave vai acontecer conosco. Como é comum em casos de onipotência, rega o frondoso tronco do nosso princípio inabalável (o de não se exercitar, no caso, embora outros possam ocupar esse lugar) uma água que atende pelo nome de Covardia, que nasce lá nas profundezas dos nossos medos. Medo de nos defrontarmos com as dificuldades, medo de confrontarmos nossa finitude (não, não vamos dar conta de tudo e a morte pode estar mais próxima do que fingimos), medo inclusive (pasmem!) de ficarmos mais bonitas nesse processo, diferindo daquilo que talvez esperassem de nós ou daquilo do qual nos julgamos merecedoras.

Parece que há um lugar chamado Conforto, onde habitamos. É um lugar amplo. Uma zona, chamam. Esse lugar pode inclusive ser bastante desconfortável, mas é nosso, é conhecido, as frustrações nos são familiares, por isso o nome de conforto. Quem é que em sã consciência vai sair das frustrações que lhe são conhecidas para ir buscar outras, fora da zona de conforto? Só quando ousamos aceitar que não há outra saída, pois permanecer no Conforto é perecer.

Eu não quero morrer cedo. Não sei se um dia vou achar que já não é mais tão cedo. Mas mais do que não morrer cedo, não quero que minha terceira idade – que está ali na esquina – seja vivida como um fardo de dor, para mim e para os que me cercam. Então contrario os princípios que me regem há mais de quarenta anos e, resignada como quem toma um remédio, faço meus exercícios. Não tenho sentido dor. Talvez seja possível rearranjar os móveis da zona de conforto para que caiba mais conforto e menos frustração, com um pouquinho de coragem para contrariar a si mesma.