domingo, 4 de abril de 2010

A mão que afaga é a mesma que apedreja

O caso Nardoni. Os deuses todos sabem que eu não quero e não vou participar da catarse pública de revisitar cada detalhe de mais um espancamento e tortura de criança nesse país, algo que não é tão raro como gostaríamos de imaginar, para nosso próprio conforto. O espancamento terminar em morte também não é raro, é só dar uma checada nos hospitais de qualquer cidade. Não tão comum, sem dúvida, é a criança ser jogada de um apartamento de classe média tão parecido com os nossos, inclusive com as mesmas redes nas janelas, providencia que tomamos para proteger nossos filhos. É uma ironia macabra. O choque da nação e a cobertura frenética da imprensa – que vende mais quando há notícias chocantes que causem identificação do público – são compreensíveis.
Mas há uma questão que me incomoda mais que as outras em relação ao surto de violência que resultou na morte da menina Isabela. Ele não pode ter sido o primeiro. Quando ocorre o assassinato de uma criança precedido de espancamento, essa última agressão é a culminância de muitas outras. Quem acompanha casos de violência contra mulheres sabe que ninguém se descontrola uma única vez e, na primeira ocasião que espanca um membro da família, o faz até matá-lo. Isso sim, seria raríssimo. Há, na verdade, ambientes maléficos, doentios de longa data nessas famílias, onde se encontram grandes buracos cheios de dor, recobertos pelo silêncio. O silêncio é uma coisa com a qual podemos nos acostumar facilmente, mesmo porque a fala implica em reviver a memória daquilo que gostaríamos que não houvesse acontecido. O silêncio tem, então, seus confortos. É melhor silenciar do que encarar a vergonha de se pertencer a uma determinada família, é melhor silenciar do que provocar novos ataques, é melhor silenciar do que se perceber um perdedor em meio a uma sociedade que cultua a felicidade aparente. As crianças aprendem isso rapidamente. Todas sorriem para as fotos presentes nos celulares dos pais, a serem exibidas publicamente: vejam como somos felizes. Ai de quem não sorri!

Não me apedrejem ainda, não estou levando a mãe da menina assassinada a julgamento, embora aparentemente ela tenha feito vistas grossas a machucaduras anteriores. Mas me parece que houve silêncios ali, que se tornaram perigosos. Sabem quem é uma grande aliada do silêncio? A correria do dia-a-dia. É inevitável se a pressão é enorme. E não é só em virtude dos gastos com moradia, saúde e alimentação, que já nos tomam horas de trabalho bem longas. Queremos, porque somos bons pais, que nossos filhos fiquem bonitos, bem-vestidos, tenham bons brinquedos, estudem em boas escolas, pratiquem dança, música, língua estrangeira, artes marciais, esportes e, enfim, temos que pagar mais essas contas. Isso também é amor, certo? Disso também depende a felicidade do filho, acreditamos. A somar-se a tudo isso há o dado de que também nós, pais, somos gente (surpresa!) e temos aspirações pessoais que vão desde roupas para nós e cursos que queremos fazer a uma simples cervejinha com os amigos. E o dia, esse inimigo que era pra ser a medida de nossas vidas, só tem 24 horas. Essa inflexibilidade do tempo em se esticar para que possamos acrescentar mais e mais as nossas agendas – em busca da felicidade? – é que estraga tudo. A falta de intimidade e o silêncio nocivo que dela provém, é culpa do tempo. Para completar, a intimidade tem lá seus desígnios próprios e um deles, fundamental para que ela se estabeleça, é o contato contínuo e sereno. Isso complica a equação, não?

Fico triste em saber que esse é mais um caso de espancamento terminado em morte, que poderia ter sido evitado. Não estou instigando a todos que batam às portas dos vizinhos cada vez que uma criança se coloque a berrar (haveria filas na minha porta em momentos de birra da minha pequena), mas sei que nós, como sociedade, estamos falhando em proteger nossas crianças. Nesse sentido, a denúncia faz parte desse espectro, sem dúvida, bem como um maior investimento nos Conselhos Tutelares, para que possam atender à demanda provocada por aqueles poucos vizinhos, professores e parentes que ousam romper o silêncio. Esperar que a criança espancada seja a que toma a iniciativa de buscar proteção do Estado, já é pedir demais.

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Em tempo: fico feliz de saber que há profissionais no país alertando os pediatras de hospitais públicos para reconhecerem a chamada SIBE, Síndrome do bebê espancado e a Doença de Munchaussen por procuração. Vale a pena acompanhar o trabalho do Dr. Wilmes Roberto Gonçalves Teixeira. Há uma excelente entrevista dele, aqui: http://diganaoaerotizacaoinfantil.wordpress.com/2008/04/22/violencia-mata-4-mil-criancas-por-ano/