quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Para ganhar um ano novo

Chegou o final do ano e com ele a esperança de que um ano novo signifique, para a maioria das pessoas, mudanças. Há aquelas que tiveram um bom ano e esperam que ele se repita, é claro. Mas a maioria absoluta deseja mudanças, grandes ou pequenas. Esse parece ser o momento certo para acreditar em renovação, como escreveu Carlos Drummond de Andrade em Cortar o Tempo:
Quem teve a idéia de cortar o tempo em fatias, a que se deu o nome de ano, foi um indivíduo genial. Industrializou a esperança, fazendo-a funcionar no limite da exaustão. Doze meses dão para qualquer ser humano se cansar e entregar os pontos. Aí, entra o milagre da renovação e tudo começa outra vez, com outro número, e outra vontade de acreditar que daqui para diante vai ser diferente.

Drummond sabia do que estava falando. É preciso acreditar que as coisas vão se modificar, não há vida que se sustente por muito tempo quando a esperança mingua. Ela está lá, na virada do ano, na contagem regressiva e na comemoração do fim de um ciclo. Doze meses, apenas isso. Mas desejamos crer que agora que o calendário foi zerado é possível que nós também tenhamos sido e, assim, se inicie uma fase completamente nova da vida.

Lembro que quando tinha por volta de seis ou sete anos de idade passei a compreender verdadeiramente o Ano Novo, ou, pelo menos, achei que tinha compreendido. Um ano estava acabando, todos estavam comemorando, uma grande mudança estava para acontecer. Quando o relógio bateu meia-noite corri para a enorme sacada típica dos apartamentos funcionais da década de setenta, e olhei para o céu. Esperei. Nada aconteceu. Era uma noite escura sem estrelas. Lá de cima esquadrinhei as redondezas, mas também não vi nada de novo. Vi as pessoas celebrando, isso sim, mas a mudança que eu esperava – por que será que achei que estaria no céu? – não veio. Um dos irmãos apareceu para me chamar para entrar. Expliquei que estava esperando que algo visível, a cor do céu pelo menos, se modificasse. Afinal começava um ano novo, certo? Ouvi suas abstrações a guisa de explicações, mas me senti profundamente decepcionada. Foi um daqueles momentos de perda da ingenuidade, no qual a criança olha com feroz criticidade o mundo dos adultos. O Ano Novo, de verdade, não existia.

Desde então, vejo com certa desconfiança a histeria coletiva em torno do suposto zerar dos cronômetros, balancetes, prazos, cronogramas e calendários, sejam internos ou externos, pelo milagre da chegada de um Ano Novo. Mas, em retrospecto, acho que compreendi. É preciso acreditar, é preciso superar a exaustão da esperança. Comemorar, sorrir, brindar e dizer: “Agora será diferente”. Ou seria: “Agora farei diferente”? É novamente Drummond quem fornece o mapa para a mudança desejada em seu Receita de Ano Novo, que vale a pena ler na íntegra:

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)


Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumidas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.


Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Um exército de branco

Uma amiga me chamou a atenção para a declaração de uma famosa apresentadora de televisão na capa de uma revista de celebridades. A frase era: “Depois que fui mãe entendi porque vim ao mundo.” Ficamos pensativas. É que não dava para ignorar o ato falho e olha que nós não precisamos incorporar o pai da psicanálise para percebê-lo. A moça em questão, que aparece em foto posadinha (como devem ser todas as fotos comerciais, compreendo) com o filho – na qual os rostos nem se tocam – já foi mãe. A tarefa dela já acabou. Engravidou, gestou e pariu, o que, convenhamos, não é pouco em termos de experiência de vida e de doação. Agora, acredito eu, deve haver profissionais de gabarito contratadas para cuidar do pequenote e assegurar que a vida dele vá em frente. Essa mãe pagará por todas essas despesas o que também, reconheço, não é pouco, materialmente falando. Materialmente.

Há um exército de branco em marcha nas classes médias e nas classes altas do país. São as babás, que vão desde as que moram nas residências, as que passam o dia ou a noite junto da criança, as que trabalham em sistema de revezamento e as absolutamente desconhecidas, cujo trabalho é oferecido em resorts para que o casal que viajou sem sua babá possa receber o merecido descanso. É um serviço que não tem preço. Ou tem e baixo em muitas ocasiões, embora, se pararmos para pensar, substituir uma mãe seja algo de absolutamente precioso. Desejo muito que as recrutas desse exército estejam devidamente preparadas para uma tarefa tão importante, que influi nos fundamentos da sociedade.

O que está sendo substituído não é o trocar de fraldas, não é o embalar para dormir, não é o dar banho ou dar papinha. O que as babás realizam vai muito além dessas tarefas embora esteja embutido na própria realização delas. É através do olhar e do toque de quem o cuida, da maneira mesmo como é manipulado e de como se conversa com ele que o bebê vai desenvolver seu psiquismo, ou seja, vai desenvolver o mais fundamental manacial de emoções ao qual recorrerá a vida inteira, nas mais diversas situações que enfrentar. Crianças mais velhas já o tem formado, mas todos sabemos o que comparações entre irmãos, palavras duras e escárnio, só para citar alguns exemplos, podem fazer no desenvolvimento de uma criança ou mesmo de um adolescente.

Seria bom que não houvesse um mercado tão grande para as celebridades que se parecem “gente como a gente”, só que melhorada. Gente que faz compras no supermercado, mas usando salto agulha. Gente que trabalha muito e se alimenta “corretamente”, por isso não adoece. Gente que dá à luz como você, leitora, mas que em menos de um mês depois está de volta à forma ou, quem sabe, em melhor forma! Esse produto que chamo “celebridade que você pode imitar” tem um preço alto e é invariavelmente fadado ao fracasso. Me recuso a comprar.

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Em tempo, não me apedrejem: não sou contra a recorrer à ajuda de babás na criação dos filhos. Especialmente em famílias pequenas, cada vez mais comuns. Sei que é preciso muita ajuda e aprendi um bocado ouvindo mulheres simples, mas sábias nos seus palpites e experiências.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Qualquer amor

“Qualquer maneira de amor vale aquela, qualquer maneira de amor vale amar, qualquer maneira de amor vale a pena, qualquer maneira de amor valerá”. A gente cantava junto com o Milton Nascimento nos LPs de adolescência ou sozinhas nas rodinhas de violão. A música se chama Paula e Bebeto. Acreditávamos muito, por isso cantávamos tão empolgadas. Hoje me pergunto, será mesmo? Será que qualquer maneira de amor vale a pena? Acho que não. Há muitas maneiras pelas quais não vale amar.
Não vale amar sem ser amado, por exemplo. Ou até vale, afinal é possível nutrir carinho por uma pessoa com a qual você não vai estar pelas mais diversas razões, distâncias de toda ordem, contanto que isso não atrapalhe sua vida. Principalmente sua vida amorosa. Mas não vale a pena – e a palavra é essa mesmo, pena, de punição, de sofrimento – amar quem te desama. Talvez desamar soe meio esdrúxulo, mas gostaria de propor a palavra assim mesmo. Porque acho que há uma grande diferença entre não ter o amor correspondido e ser desamado por alguém.

Não se pode forçar ninguém a corresponder ao amor e quem já foi objeto de uma afeição que não encontrou ressonância em si mesmo sabe como é delicada essa situação. E sabe de como é importante retirar-se, não alimentar o sofrimento do apaixonado, permitir que a pessoa faça seu luto. Quem apostou num amor que não vai virar romance precisará redirecionar suas energias, apaziguar esse afeto que já ia se esparramando por dentro dele.

No entanto há os que não correspondem ao amor oferecido, mas tampouco se retiram da cena. Ficam inebriados pelo poder que exercem sobre o apaixonado e se utilizam desse para fins pessoais que em nada incluem as necessidades daquele que ama. Precisam de um “estepe” num fim de semana em que os outros “pneus” não rodaram? Lá vai o apaixonado acreditando estar recebendo afeição verdadeira, se expor aos sabores dos ventos do objeto de sua afeição. Desamam o apaixonado, alienam-no. Chegam mesmo a sentir pena da situação dele, mas não o libertam e podem submetê-lo a situações abusivas. Quanto mais “amam” a si mesmos, ou seja, quanto maior seu egocentrismo e sua conseqüente falta de empatia, mais desamam seu fiel amante.
Contudo, diz a sabedoria já popularizada que ninguém liberta ninguém, a liberdade é uma construção interna. Então porque se submete ao desamor, aquele que ama? Será que é porque lhe sobra tanto amor assim pelo outro, a ponto de se submeter a abusos, ou será que é porque lhe falta amor por si mesmo, esse que é a argamassa da construção da liberdade interior? Talvez não consiga olhar para si próprio, esse que ama ser desamado. Talvez dependa integralmente do olhar exterior para saber-se existindo, ainda que esse olhar seja de desamor. Quando não há um olhar interno que nos sustente, qualquer outro exterior vale.

O afeto por alguém com quem não se viverá uma história de amor não precisa desaparecer completamente, muito menos virar em ódio, conseqüência provável e amarga da vivência do desamor. Um pote até aqui de mágoa. Esse sentimento precisa é se modificar, ser só um carinho que fica lá, nalgum lugar quentinho da memória afetiva. Quentinho e por vezes doloridinho, admitamos, mas não uma câmara de tortura no andar mais quente do inferno. Acho que isso não é amor.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Vestido de noiva?

Concordo com a Nina Lemos, que assina o divertido e sagaz blog “02 Neurônio” e uma coluna na Folha de São Paulo: o cartunista Laerte é um dos caras mais livres deste país. Para quem não sabe, Laerte, gênio (mesmo!) dos quadrinhos brasileiros, está empreendendo uma jornada como cross-dresser, atividade em que um homem ou uma mulher se veste como o sexo oposto. É claro que muita gente está pensando que o cartunista endoidou de vez ou “virou” gay. Não é o caso, embora ambas alternativas sejam direito dele, bem como a de se vestir de mulher, se assim o quiser. Ele admite que está passando por uma crise existencial, fala aberta e tranquilamente sobre isso como só os lúcidos sabem fazer e afirma: “Estou no completo controle de minhas faculdades mentais.”
O fato é que Laerte, vestido de mulher, prestou um favor a todas nós ao difundir suas impressões sobre o vestuário feminino. Ele fez descobertas interessantes sobre a vivência das mulheres ao se vestirem na nossa sociedade, verdades alheias ao conhecimento dos homens que nos cercam, como a de que é preciso gastar muito mais tempo e dinheiro em cabeleireiro, manicure e na escolha do próprio vestuário feminino em si, embora, por outro lado, as opções sejam muitas, mais interessantes e divertidas do que as do vestuário masculino. E essas declarações do Laerte, que eu prontamente imprimi e dei para o marido ler, colocaram minha imaginação em órbita. Não pude parar de pensar, durante dias, quando via os homens que conheço (e alguns que desconheço): se este homem parado na minha frente agora fosse se vestir de mulher com seriedade (não de forma carnavalesca) durante uma semana, como será que ele se sairia?
Será que teria preocupação em disfarçar sua barriga? Faria o gênero perua, elevando sua vaidade ao cubo diante de tantas possibilidades? Vestir-se-ia formalmente, terninho de trabalho com riscas de giz, embora calçando um sapato preto brilhante de salto altíssimo? Bancaria o estilo bohemian, optando por vestidões e colares? Será que a natureza de um homem se modificaria na experiência de vestir-se de mulher ou, na verdade, se revelaria? Acredito na segunda opção. Posso imaginar os extremamente organizados arrumando o guarda-roupa com exasperação porque há peças que não combinam com outras, escolhendo cuidadosamente o que irão vestir no dia seguinte e separando as roupas de forma a não amassarem. Haveria os que usariam todas as cores, estampas e tamanhos ao mesmo tempo, sem nenhum critério, apenas pelo deleite de sair da mesmice, desejo represado. E os criativos mas desorganizados, que nunca encontrariam nada no roupeiro por falta de planejamento e viveriam atrasados para seus compromissos. Chegando ao escritório, diriam ao colega ao lado, na mesa de reuniões: “Cara, não tenho nada para vestir!”
E se numa cerimônia de casamento envolvendo vestuário tradicional os papéis se invertessem e seu marido tivesse que escolher o vestido de noiva, que modelo seria do agrado dele? Suspeito que as longas caudas sairiam de moda e os arranjos de cabelo pinicantes também. Talvez as barras dos vestidos subissem. Não sei se o branco permaneceria como cor predominante.
Mas de uma coisa eu tenho certeza: se homens usassem meia-calça, dessas que desfiam por qualquer coisinha, as cadeiras e mesas do local onde você trabalha seriam todas lisinhas e a indústria das “meias-que-puxam-fio” já teriam sofrido muitos processos judiciais por venda de produto com padrão aquém do aceitável!

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

O filho que eu quero ter

Na última terça-feira foi o Dia da Criança. Um dia no qual você acaba refletindo sobre a infância, inevitavelmente. Sobre a sua infância, sobre a infância dos filhos ou das crianças do país e do mundo, sobre o que você gostaria que tivesse sido e sobre como você gostaria que as coisas fossem dali por diante. Funciona um pouco como um Ano Novo porque as reflexões acabam levando a conclusões sobre o que melhorar e sobre como podemos colaborar naquilo que gostaríamos de ver mudado. Alguma coisa, ainda que pequena, todos podemos fazer, começando por nos educarmos acerca das necessidades da infância.

Eu li um bocado de livros sobre criação de filhos. Uns me ajudaram, uns atrapalharam e de alguns poucos discordei veementemente. Há livros no mercado para todos os gostos. Desde aqueles para justificar que o mal comportamento de um filho são sinais de que ele é especial, portador de algum sinal divino, como também para incentivar uma má vontade coletiva que vê a nova geração como incompetente e preguiçosa, para a qual apenas a boa e velha “linha dura” é a solução. Exageros vendem bem, como já sabemos. Aprendi com os livros e a filha ajudou a solidificar a sabedoria de que a teoria, na prática, é outra mesmo e difícil para caramba.
Mas há uma coisa que me incomoda um pouco, algo que acredito que os livros sobre educação de crianças nunca dizem com clareza e que me parece fundamental. A primeira “grande providência” que você tem que tomar se vai ter ou teve um filho, é esta: procure se tornar a melhor pessoa que você pode ser, nesse mundo. Não a mais perfeita, por favor, não é isso. Aliás, se você vai ter um filho seria muito legal começar a abrir mão da busca da perfeição. Não, não é com o seu estresse em conciliar tudo, em ser a super-mãe da capa das revistas femininas, que estou preocupada. É com o estresse da criança, em ter que crescer à sombra de alguém em busca da perfeição.

Funciona mais ou menos assim: os pais são a fonte de formação do psiquismo infantil e o são naquilo que fazem conscientemente, sabedores de si mesmos e naquilo que são inconscientemente, naquilo de si que nem sequer reconhecem, mas que se traduz na vida, de forma imperceptível, talvez. A criança, no entanto, percebe o imperceptível. Não de forma absolutamente racionalizada, mas através do afeto que na primeira infância parece ter a forma de uma grande esponja absorvente de tudo o que se passa ao redor. Se isso estiver certo – e há dados científicos indicando que está – a melhor coisa que podemos fazer para termos filhos do jeito que nós sonhamos, é ser esse sonho. Filhos calmos? Seja calmo. Gente honesta, correta, coisa que está faltando neste país? Seja honesto, procure fazer o que você acredita que é certo. “Queremos crianças felizes”, dizem todos os pais em coro? Seja feliz, você mesmo. A sua cara de infelicidade na mesa de jantar não está ajudando. E se os filhos lhe fazem infeliz, porque tomam muito do seu tempo e dão despesas grandes, por favor, interrompa a produção imediatamente. E lembre-se que não foi solicitação deles fazerem-se irremediavelmente presentes em sua vida.

É uma máxima comum esta, de ser a mudança que você deseja, oriunda de ensinamentos orientais e reproduzida em muitos manuais de auto-ajuda. Só precisamos lembrar de a transpormos para o campo da infância. Será que há em mim, a despeito do muito ou do pouco que a vida possa ter me oferecido, a criança que eu desejaria que meu filho fosse?

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Das interrupções no dia-a-dia de uma mulher

A vida de uma mulher que é mãe e casada é uma vida de interrupções. Alguém já escreveu sobre isso na internet com mais beleza, mas, certamente, não necessariamente com mais propriedade do que eu. A vida de uma mulher que trabalha, é mãe, casada e tem cachorros, acrescento eu, é uma vida de muitas interrupções. Ofereço um exemplo para aqueles que não sabem bem do que se trata (houve épocas em que eu também não sabia, lá, no meu apartamento de solteira). Ir ao banheiro, um gesto de solidão tão prosaico, pessoal e intransferível, o ato que mais une a humanidade além do nascimento e da morte, é uma decisão que será interrompida, atrapalhada, adiada, se você se encaixa nas categorias acima listadas. Não se trata apenas do velho “é certo que o telefone tocará”, não. Além do telefone, as crianças cairão, brigarão, gritarão, chorarão, o interfone tocará, o cachorro latirá, seu marido perguntará algo a você – após horas de quietude em frente ao computador, você nem lembrava mais que ele estava em casa – começando por “Querida onde está...” e terminando em tom inaudível.

É a de Lei de Murphy aplicada a esse caso específico, a interrupção ocorrerá principalmente naqueles momentos em que você deseja ardentemente ter um tempo só para você. Uma idéia que você quer anotar para o texto que está escrevendo (se não anotar agora certamente vai esquecer), o desfecho inacreditável da história que está lendo, o item que você precisa escrever na lista de supermercado, o telefonema de uma amiga com quem você gostaria de conversar: tudo isso será interrompido pelas pessoas e criaturas que você mais ama no mundo mas que, dia sim, dia não, tem ímpetos de matar. Você explica que vai tomar café e que detesta café frio, que te dêem um tempo, ninguém te interrompa, é um ritual sagrado, hora de acalentar pensamentos e devaneios com o cheiro gostoso do café, o pão quentinho com manteiga. Cada um cria seus rituais zen, de acordo com sua loucura. Se, um pouquinho antes de terminar o café você for interrompida do claustro e solidão que criou lá no seu cérebro, já dá para ficar contente e voltar com alegria ao convívio da família.
O que acontece é que mesmo as mulheres que gostam de encher a casa de pessoas amadas, bichos adoráveis e plantas que precisam de cuidados complicados, necessitam muito, também, ficar sozinhas com seus pensamentos. Os seres humanos são assim, cheios de (aparentes) contradições.

Na casa dos quarenta anos, não são poucas as mulheres que equilibram o trabalho e a vida doméstica da família que gerenciam com as inevitáveis demandas de cuidados de saúde de pais idosos. É um período em que nós, mulheres, temos o privilégio de observar atentamente a tessitura da vida, o que realmente compõe sua trama e o que é apenas adereço, onde esse tecido se esgarça e em que pontos ele resiste. E é por isso mesmo que a reflexão solitária se faz mais necessária do que, digamos, na casa dos vinte anos e a “fuga premeditada” do convívio familiar, ainda que por poucas horinhas semanais, também.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

A função paterna

Observo o semblante de minha filha e percebo que ela está perdidamente apaixonada. Está inquieta e insatisfeita. É que quando seu amor demora a chegar ela se ressente e, então, quando ele finalmente chega, ela opta por fingir que não se importa muito com sua presença. Procura disfarçar o quanto o ama, receosa do que essa entrega possa significar. Mas basta uma insistência da parte dele e logo estão juntos, os dois pombinhos, jogando bola no corredor do apartamento. Nessas horas, trato de me recolher a minha insignificância. Minha filha ainda não tem quatro anos completos e o pai é o primeiro homem de sua vida. Caso eu participe de um faz-de-conta em que o pai esteja presente, não raro ela me delega o papel de bruxa e, a ela mesma, o de princesa. Nem é preciso dizer que ao pai cabe o de príncipe. Tudo bem, penso, mãe é meio bruxa mesmo.

A relação dos meninos com o pai é diferente, me ensinam os que sabem. Não há esse amor romântico, mas sim uma ansiedade de reconhecimento, igualmente profunda. É amor, sem dúvida, que solicita, “me permita amar você e, por favor, se orgulhe de mim. O que eu mais desejo na vida é ser como eu vejo você”.

É por conta do amor em nós depositado que os filhos nos obrigam a sermos melhores pessoas. Ninguém quer, em sã consciência, ser o responsável pelas más escolhas amorosas de uma filha adulta. Nenhum pai deseja que a filha se relacione com um homem que a maltrate e menospreze. Tampouco há pais que conscientemente esperam de seu filho que se torne um fracassado, um bêbado, traficante ou agressor. Todos os pais temem a adesão às drogas. E, no entanto, esse caminho é muitas vezes cimentado com palavras e gestos cruéis contra as crianças, atitudes que lhes comunicam claramente que elas são um estorvo e que não se espera nada de positivo de seus futuros. As palavras agressivas e as surras, diriam os pais, têm a intenção de educar, de salvaguardar o futuro. No entanto se esquecem que é impossível construir futuro massacrando o presente. O resultado de muita violência impressa é, inevitavelmente, detrito, sucata de ego. Será um trabalho quase impossível colar pedacinhos para se fazer um adulto feliz ou bem-sucedido (de acordo com os padrões familiares) alguém enfim, de quem a família possa se orgulhar.

Há alguns meses atrás traduzi um ótimo artigo do psicólogo norte-americano Michael Thompson, que trabalha especificamente com meninos.Esse pesquisador acredita que o caminho mais seguro para a construção de uma civilização onde as pessoas se importem umas com as outras, que ele chama de civilização empática, é fazer cessar o espancamento, o sarcasmo e outras formas de violência infligidas aos meninos quando pequenos. O psicólogo alerta que garotos oriundos de ambientes traumatizantes com pais brutais podem crescer para se tornarem tiranos e assassinos.
Durante a infância e a adolescência precisamos de homens cujo comportamento sirva de modelo para os meninos como cuidadores, insiste ele, sem que isso signifique reprimir suas manifestações masculinas e tentar transformar o comportamento das meninas em modelo a ser seguido. Achei sua proposta de ensinar os meninos a serem cuidadores, inclusive de crianças pequenas, revolucionária.

Bons pais, afirma Thompson, transmitem seus melhores valores e instintos de geração a geração. Homens mais seguros, valorizados desde pequenos pelo homem que mais admiram, seu próprio pai, resultariam eles mesmos em pais empáticos aptos a construir uma sociedade menos agressiva. Eu apoio essa idéia.

(A tradução completa do artigo de Michael Thompson se encontra neste blog. Clique no menu à direita, em 05/30)

sábado, 24 de julho de 2010

A mãe estóica

Não tenho a intenção de menosprezar as mães que são donas de casa. De jeito nenhum. É um trabalho insano, fundamental para o funcionamento da unidade familiar, em especial nas famílias que não tem como pagar uma empregada doméstica, e muito raramente reconhecido de verdade. Geladeira de presente no Dia das Mães, para mim, é piada de muito mau gosto. Faço “campanha” para que as famílias de classe média percebam a importância de se recolher o INSS para a mãe dona de casa de forma que ela possa vir a se aposentar um dia, depois de muitos anos trabalhando sem nenhuma remuneração. Acho que deve ser justamente em virtude da pouca valorização do seu trabalho que algumas mães insistem em buscar o reconhecimento do seu sacrifício junto aos familiares, na base da chantagem. Chamo esse fenômeno de “A mãe estóica”, me apropriando do sentido vulgar da palavra estoicismo, de não temor ao sofrimento. Sei que é meio redundante porque ser mãe e dona de casa de mangas arregaçadas requer um bocado de estoicismo, se compreendido como busca da virtude. Mas desse barco chamado estóico, para o chamado masoquista, para o chantagista, os pulos são pequenos no rio da frustração e os sofrimentos acabam por alcançar o mar. Tudo fica contaminado.
A titulo de exemplificação pensemos no famoso doce gaúcho chamado chimia ao qual só tínhamos acesso na infância se alguém da família se dispusesse a fazê-lo. Dá um trabalhão danado, especialmente se for de figo. Então, se alguém deseja fazer tachos de chimia além de todas as outras tarefas domésticas que lhe cabem, que faça porque gosta, por terapia, por diversão, pelo desafio do novo, mas não por obrigação. Afinal, há chimia pronta no supermercado, ainda por cima com muita variedade. Provavelmente mais barata do que a feita em casa, se somados inclusive o fator mão-de-obra, que infelizmente não é pago. Não faça chimia porque acha que é seu dever, porque na verdade não acredita que tenha direito a umas horas na poltrona em frente a TV e depois fique reclamando com os filhos e o marido que está com as mãos queimadas de mexer no tacho. Conheço cenas de tachos de chimia onde fervem mágoas de anos de não reconhecimento mais tarde espalhadas no pão nosso de cada dia dos familiares. As fatias engolidas com a culpa mal mastigada.
Há quem queira quarar roupa (e no inverno!) porque não se conforma enquanto o branco não ficar bem branquinho mesmo? Está bem, é um direito que assiste a quem curte o “branco mais branco”. Lembre-se apenas que esse é um prazer seu e bastante solitário, ok? Vai ser difícil emplacar essa conversa com os outros membros da família – “Olha só como esse lençol clareou depois de quarar!” – e eles acompanharem com o mesmo grau de entusiasmo que você. Seu filho adolescente possivelmente não vai nem prestar atenção se a camiseta está mais branca ou mais amarelada. Não espere que ele lhe agradeça pelo alvor de seu uniforme escolar. Essa é uma necessidade sua. Não exija de suas filhas que a imitem. A escolha de pegar o caminho mais complicado para lavar as roupas, colocar comida na mesa, limpar a casa, acompanhar os familiares em suas demandas, é, na verdade, bastante pessoal.
Nem estoicistas nem hedonistas, o bom mesmo seria que as mães e donas de casa pudessem criar espaços de conforto para si mesmas nos seus cotidianos atribulados de muito trabalho incluindo a possibilidade de poder, na velhice, encontrar a sua espera uma remuneração e alguma garantia de descanso.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Nada a temer

Antigamente, mas não muito antigamente, as pessoas acreditavam que não se devia pronunciar a palavra câncer. Dizia-se “aquela doença”, temia-se que a invocação do nome trouxesse a “coisa ruim” para junto de quem a pronunciou. A mesma coisa ocorria – e ainda ocorre – com o vocábulo Diabo. Há até um produto utilizado para desentupir ralos e pias chamado Diabo Verde, cujo nome uma senhora que limpava a minha casa se recusava a falar. Da primeira vez eu custei um pouco para saber o que estava acontecendo, depois entendi e respeitei, mesmo achando que é ignorância atribuir a uma palavra poderes extras além da idéia que aquele conjunto de letras e sons representam. No entanto, compreendo que é justamente por representar idéias que as palavras impactam as pessoas com tanta força e é o imaginário de cada um que as torna positivas, negativas ou inócuas.
Fico triste ao perceber que feminismo é uma palavra que não anda com boa conotação no imaginário das classes médias. É uma pena. Devemos ao feminismo – um movimento que modificou o imaginário e, por isso, o mundo – muitos dos direitos que nós mulheres ocidentais desfrutamos, como o de sermos indivíduos com características próprias de nosso gênero e com aspirações outras que não necessariamente as mesmas que aquelas do sexo masculino sem que, em virtude dessa diferença, nossos Direitos Humanos possam ser de alguma forma pisoteados.
Nas rodinhas de amigos, contudo, se você se declara feminista o pessoal fica meio cabreiro. Temem discursos inflamados, rancores contra o masculino, recalques pessoais jogados na mesa de jantar. Acredito, sinceramente, que não há o que temer e que essa época de catarse das emoções aprisionadas já passou há muito tempo. Mas o feminismo, esse questionador do lugar e das necessidades das mulheres na sociedade, ainda tem muito que fazer.
Tomemos o caso de Eliza Samudio, por exemplo, que teve um filho com Bruno, o goleiro do Flamengo que está sendo investigado como provável mandante de seu assassinato. “Maria Chuteira”, acusam-na, como se o fato de manter relações com jogadores de futebol com vistas a ascensão social justificasse o crime cometido contra ela. Bruno, que ganha salários que seriam incompatíveis com a importância de sua atividade se vivêssemos numa sociedade saudável, desfruta da posição de herói popular nos meios que freqüenta. Muitos torcem sinceramente pela sua libertação, da mesma forma que outros torceram por Polanksi, o genial diretor de cinema que estuprou, aos 43 anos de idade, uma menina de 13. As chamadas celebridades, acreditam seus pares e admiradores, estão acima da sociedade e, portanto, das regras nela existentes para a proteção de mulheres e crianças, dentre outras.

Uma das tarefas mais importantes do feminismo no mundo atual está na educação de mulheres de todas as classes sociais para que compreendam em profundidade que não é aceitável serem agredidas verbal, física ou psicologicamente. Que entendam que um empurrão, um xingamento, uma ameaça, não é admissível. Que o não acesso aos bens da família, ao dinheiro do dia-a-dia, não está correto. Que uma adulta não deveria precisar de permissão para ir e vir, pois é direito garantido constitucionalmente a todos. Que as decisões nas famílias devem ser negociadas e que sexo não é moeda de troca fora dos círculos de prostituição. Essas mulheres educadas e conhecedoras de seus desejos são as que modificarão o estado das coisas, inclusive na forma de criar seus filhos e filhas. Uma vez tendo seus horizontes ampliados e sabendo-se detentoras de direitos, compreenderão que não reside em “Brunos” suas possibilidades de uma existência digna. Quando as mulheres detêm poder sobre suas próprias vidas a sociedade se eleva, os valores progridem e os “Brunos” do mundo são colocados em seus devidos lugares de importância. Por isso, caros leitores e leitoras, não há o que temer do feminismo. Certo?

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Por entre as frestas

Feche a mão em concha e coloque um pouco de leite nela. Observe que se você não apertar os dedos com força, o leite escorrerá pelos espaços entre os dedos. Há uma expressão em inglês, “slip through the cracks”, que sempre me traz essa imagem à mente. Para ser sincera, sei que traduções como “escorrer por entre as fendas”, “escapar por entre as brechas” e muitas outras que podemos encontrar no Google para essa frase são inadequadas, embora todas elas possam invocar imagens muito, muito interessantes. Na verdade, a expressão se refere comumente a um tipo de falta de atenção que pode provocar o afastamento de um indivíduo em relação a um grupo num determinado ambiente, como numa escola ou numa família.
Todas as escolas, assim como todas as famílias, apresentam rachaduras. São espaços de desatenção, aberturas outras pelas quais se pode passar além das institucionalmente desejadas e criadas, como as portas e as janelas. Ao adentrarmos pelas portas e nos debruçarmos nas janelas estamos no espaço onde somos vistos, reconhecidos, onde dialogamos com os outros em ambientes bem iluminados. O local das rachaduras, das frestas, não é assim. É mais escuro e lá reinam o esquecimento e a não nomeação das coisas, principalmente das que nos incomodam. O cantinho das frestas é onde nos escondemos quando a auto-estima está lá em baixo e não temos condições de suportar a entrada pela porta.
Em meios extremamente rígidos, onde as portas e janelas estão fechadas e a iluminação não é convidativa ao diálogo, as frestas são os lugares pelos quais as pessoas fogem, numa tentativa de salvaguardar sua individualidade do esmagamento. Sem dúvida esses não são ambientes saudáveis, se o “ser” não pode entrar pela porta da frente, respeitado em suas peculiaridades.

Nas escolas e nas famílias atuais, contudo, é um pouco mais raro encontrar tamanha rigidez que as frestas se tornem janelas pelas quais se pulem. O que é muito mais comum acontecer é a criança ou o adolescente escapulir pelas brechas da superlotação das salas de aula, pelo baixo número de cuidadores e professores, pela incompetência em se perceber emocionalmente o aluno – mesmo o que apresenta boas notas – pela falta de tempo dos pais e dos cuidadores domésticos, pelo excesso de cobranças, pela escassez da convivência.
O preço de se perder alguém pelas frestas do sistema, seja ele qual for, é a alienação física e emocional desse indivíduo que, no entanto, não está em condições de ficar sozinho, ainda que seja esse seu brado. É impossível e mesmo não desejável dar atenção a tudo e a todos ao mesmo tempo. Mas é importante perceber o afeto escorrendo por entre os dedos a tempo de reter na mão o líquido precioso que constrói, alimenta e aprofunda as relações de vida.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

A desordem da felicidade

Não se preocupe demais com a desordem em sua casa. Embora você se esforce, a sala nunca parece pronta para sair na capa da Casa Cláudia ou de outra revista de decoração? O quarto, então, nem pensar porque a bela poltrona escolhida a dedo está soterrada embaixo de roupas e leituras? Há calçados espalhados pelo chão? Não faz mal. As belas fotos que vemos nessas revistas não são de casas de verdade. Não no exato momento em que as fotos foram tiradas e havia uma equipe observando o enquadramento, a iluminação e colocando o vaso com rosas perfeitas um pouco mais para a direita. Umas quantas pessoas observando a casa, milimetricamente estudando os objetos para compor um ambiente vendido para ser o seu. Só que essas fotos não representam cenas de uma casa de verdade. Pelo menos não da minha, onde a casa é mais vivida do que estudada. E a gente sabe que quando a equipe da revista vai embora, depois de uns momentos de admiração pelo trabalho realizado – quando talvez as pessoas tentem nem parecer presentes para não tirar nada do lugar – a vida invade o ambiente e as rosas maravilhosas eventualmente vão parar no lixo e são substituídas, ou não. Às vezes o vaso fica vazio.
Claro que quando a gente reforma, se muda, compra móveis ou quadros, observa e estuda o ambiente para saber se ficará bom, se estará confortável e acolhedor para as pessoas morarem lá. Pessoas essas que vão tirar os sapatos e colocar os pés em cima do sofá, que largarão copos e canecas pelas mesas, que deixarão jornais pelas poltronas todas e empilharão livros em cima do criado mudo. Isso sem contar os brinquedos bem no meio da sala, para quem tem crianças ou mesmo certos bichos de estimação. Uma casa de verdade fervilha de vida, ainda que seja uma moradia de solteiro, e a vida é movimento. Dificilmente uma casa é estática, parecendo permanente capa de revista e, ainda assim, espelhando felicidade.
Uma das tarefas mais árduas na vida é designar novos lugares para os pertences de quem morreu. Fazemos isso por nossos falecidos, procurando escolher o que fica com quem e o que será doado, encontrando atordoadamente pedaços de nós mesmos em meio às louças, camisas, armários, tapetes. Sabemos que o mesmo será feito por nós – o mais importante: não sabemos quando – e nossos vestígios pela casa terão de ser dramaticamente reduzidos para que os vivos possam continuar a viver.
É por isso que ao final de domingo, quando vejo os rastros dos habitantes da minha casa espalhados por todos os cômodos, não me incomodo muito. Já estou na fase em que prefiro ver minha casa cheia e em desordem, do que vazia, pôster de possibilidades ainda não realizadas ou já finitas.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Laços de família

Se você cresceu em uma família de hierarquia perene, como eu, não deixe de ler O clube do filme de David Gilmour (Rio de Janeiro: Intrínseca, 2009). Por hierarquia perene eu me refiro aquelas famílias, como a minha, em que não importa a idade que você tenha sempre será considerado "uma criança" para os pais. Claro que no caso da minha família, tendo inclusive meu pai já falecido, essa hierarquia se evaporou por conta das necessidades da vida e da morte. Mas, naqueles tempos a vida nas famílias era assim. “Você sempre será uma criança aos meus olhos” é uma frase que muita gente já ouviu. Isso parece muito bonito para ser dito, mas, na prática não é tão bonito nem constrói muito a auto-estima. Pode, inclusive, ser um pouco perverso.

Crescer em ambientes onde seu (inevitável) crescimento é negado é como se esgueirar por uma fresta. Primeiro você tem que achar a fresta, depois se metamorfosear em algo kafkiano para poder passar pela fresta. Uma vez do lado de lá, você estará sozinho para encher seu balão/ego, que se encontrará um tanto quanto murcho e possivelmente um bocado culpado por ter fugido às normas familiares, aos contratos não ditos, mas em plena vigência, que explicitam aquilo que a família espera de você. Sustentar-se bem em suas próprias pernas de adulto pode ser um trabalho de uma vida inteira.

No relacionamento entre pai e filho no tal livro as coisas são diferentes. O pai não é nenhum gênio da pedagogia, a bem da verdade, não é nenhum gênio de nada. Parece, inclusive, por vezes um cara bastante atrapalhado com questões "obrigatórias" do mundo masculino adulto, como sustentar a própria família. Mas o olhar que ele tem para esse filho é raro. É um olhar cheio de amor e cheio de espaço, criando um local em seu afeto onde o filho pode crescer, mais do que isso, onde ele espera e deseja que o filho cresça, se torne homem, e ele seja "derrotado". Ou seja, nesse relacionamento espera-se que a vida tome seu curso normal e as pessoas não sejam obrigadas a permanecer na posição de escada para que o mundo de outro (pais, mães, irmãos, esposos) não se desmorone.
Um trechinho da sabedoria desse pai: "Definitivamente as coisas estavam mudando entre nós dois. Eu sabia que, ao final do caminho, não muito longe, haveria um confronto e eu sairia perdendo. Exatamente como aconteceu com todos os outros pais na história." Acrescentaria eu: estejam eles cientes dessa mudança, ou não. A leitura é linda e incrivelmente atual porque, acreditem, não são muitos os pais que têm essa clareza, não importa o quão estudados sejamos.

Vestir-se livremente

Acabou o tempo da ditadura da moda. É só assistir aos desfiles das temporadas fashion para saber que cada um pode se vestir como achar melhor. Mas olhando para o cotidiano me pergunto: será que acabou mesmo?
A Márcia Tiburi escreveu em seu blog sobre sua experiência como Creuza por um dia, quando participou da performance do grupo Creuza no Teatro da Galeria Olido em São Paulo. Referindo-se a improvisação que o grupo realiza no palco a autora referiu-se aos seus intérpretes como sendo “criatividades livres” e esclareceu: “sim, existem criatividades que não são.” É uma verdade que me impactou e que auxilia a realizar uma melhor análise de atividades consideradas criativas. No caso da moda, existe a que é criatividade livre e a que não é? Sem dúvida. É um setor em que há muita pressão por vendas e a dança das cadeiras nas grandes maisons é prova de que o olhar do investidor está mais voltado para os documentos contabilísticos do que para a coleção do estilista, propriamente dita.
E a moda que usamos no dia-a-dia, será que “criatividade livre” cabe nessa equação? Acredito que manuais de ensinamentos do bem-vestir de certa forma se sobrepõem à criatividade, mesmo aquela admirada na passarela. Bem-vestir é uma coisa, usar as roupas com criatividade é outra. Bem que temos vontade de usar um look muito louco, importado diretamente da passarela, ainda que não seja possível a gente pegar um ônibus, do ponto de vista prático, vestida daquela forma. E ainda que a gente consiga chegar ao trabalho a pé ou de carro, em muitos ambientes não seremos bem recebidas seja com o outfit copiado da passarela, seja com o inventado de noite a tesouradas, no quarto. Locais de trabalho são espaços de criatividade controlada.
Okay, entendo. Mas e fora do labor, será que é preciso vestir-se sempre bem, mais ou menos de acordo com a moda? O problema, na minha humilde opinião, do “vestir-se bem” e “adequadamente” é que isso restringe um bocado a criatividade. Então seria bacana se as pessoas tivessem espaço em suas vidas para exercer o vestir-se de acordo com sua vontade livre, sem preocupação com o que o olhar alheio classifica como “bem”. Mesmo que isso signifique moletom e cabelo desgrenhado para a elegantérrima caixa do banco ou saris roxos da cabeça aos pés para a moça que mede pouco mais de um metro e meio.
Como em tudo na vida, é mais fácil falar do que fazer. Mas admitamos que para nós, mulheres, a preocupação com a aparência é excessivamente orientada para um olhar externo, o gozo está menos no uso criativo das vestimentas e mais no reconhecimento de terceiros de que estamos “bem vestidas” de acordo com a opinião geral do que é considerado bonito. O resultado é que acaba ficando todo mundo mais ou menos igual. Então fica a pergunta, qual será o espaço para a criatividade livre no vestir, em nossas vidas? Festa à fantasia, alguém topa?

Para visitar o blog da Marcia Tiburi (Pink Punk): http://colunas.gnt.globo.com/pinkpunk/

terça-feira, 8 de junho de 2010

Você tem fome de quê?

“Não tenho nada para vestir” é uma afirmação tola, eu sei, mas que também me assalta, como a quase todas as mulheres, com mais freqüência em determinado período do mês. E embora eu esteja vendo as roupas penduradas no closet, não as enxergo e repito mentalmente que “não há nada que eu possa vestir”.
Hormônios à parte, muitas vezes me pergunto quantas roupas, quantos calçados, quantas echarpes, quantos brincos, quantos, enfim, “tudo” eu realmente preciso para me sentir bem e bonita. E acabo concluindo que não preciso de muita coisa. Acho que passei da idade de necessitar de um closet entulhado de peças para acreditar que tenho roupas em número suficiente. Ou será que não são roupas e acessórios que tenho em minhas mãos? Seriam projeções de mim mesma, fantasias não realizadas, que busco lá, dentre os cabides e botas?
É claro que as roupas têm mais significação do que simplesmente vestir o corpo, principalmente no caso das mulheres. As roupas são, como me disse um psiquiatra certa feita, representações de quem podemos vir a ser. Pequenas fantasias que vestimos, como fazem as crianças pequenas com seus super-heróis, princesas e bailarinas. Por essa razão temos mais roupas do que precisamos, porque há diversão no vestir-se, sonhos e projeções de como seremos naquele dia, naquele período da vida.
No entanto, há uma certa idade em que parece que nunca temos o suficiente, seja em bolsas e sapatos, seja em moradia, aparelhos eletrônicos ou quaisquer dos lançamentos de compra “obrigatória” por parte das classes médias. Algo nos falta. Uma fome nos consome. A grama do vizinho parece sempre mais verde e o cabelo mais bem tingido. Compramos gigantescos televisores para recepção de sinal em alta resolução, embora essa tecnologia ainda não esteja disponível em nossas casas, porque, bem, é a última tecnologia. É o que está todo mundo comprando. Assalta-nos a angústia de pertencer e de demonstrar em itens visíveis aos olhos de todos, que pertencemos. A que pertencemos? Talvez a uma classe social abastada ou a um grupo intelectualmente seleto, enfim, provavelmente a algo que pareça melhor do que aquilo que imaginamos sobre nós mesmos.
Acredito que mais tarde na vida chega-se uma idade em que se deseja muitas coisas, mas não necessariamente o que todos querem. Tendo realizado algumas fantasias, trocamos quantidade por qualidade e a opinião pessoal prevalece acerca do que se consome, relegando as propagandas e os frenesis da imprensa e das classes médias a um segundo plano. A fome passa quando temos maior clareza da finitude, pois que ela se torna mais próxima, e ficamos mais serenos em relação aos bens que possuímos inclusive desfrutando deles com mais presença. Isso porque talvez a felicidade seja mesmo, como apregoam muitos, irmã da simplicidade.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Aqui está uma tradução livre de minha parte. Trata-se de um excelente artigo do psicólogo norte-americano Michael Thompson, que concedeu a devida permissão para essa versão em português.



A CIVILIZAÇÃO EMPÁTICA: OS MENINOS SÃO A CHAVE PARA UM FUTURO DE EMPATIA

Michael Thompson, Ph. D.

Como psicólogo de crianças, está claro para mim que a rota mais rápida para uma civilização mais empática é fazer cessar o espancamento, o sarcasmo e outras formas de mágoa infligidas aos meninos quando eles são pequenos. Garotos oriundos de ambientes traumatizantes com pais brutais podem crescer para se tornarem tiranos e assassinos – pense em Adolf Hitler e Slobodan Milosevic da Sérvia – ao passo que aqueles que foram criados com apoio emocional certamente não o serão. Precisamos criar meninos amados e amáveis que têm a capacidade de crescer para se tornarem líderes empáticos e companheiros. Em todas as culturas, se queremos mudar o mundo rapidamente, nossa melhor opção é criar meninos emocionalmente alfabetizados que valorizam a compreensão. Pais e professores bem intencionados com freqüência me dizem que estão tentando criar homens “sensíveis” ou “não-violentos” que possam reconhecer seu lado “feminino” e que venham a crescer em condições de “respeitar as mulheres”. Contudo, esses esforços para criar garotos sensíveis podem ser contraproducentes. Quando perguntei a uma professora de segunda série o motivo de ela ter proibido as brincadeiras de luta durante o intervalo, bem como a chamada “escrita violenta” em sala de aula, ela me disse: “porque eu não quero que um dos meus meninos venha a se tornar presidente quando crescer e decida invadir o Iraque.” Compreendo o sentimento dela, mas seu ponto de vista é parcial e nada científico. As brincadeiras infantis não levam à violência do mundo adulto. Eu sei que os meninos na aula dela percebem que ela vê a eles e a sua escrita como sendo potencialmente perigosos. Isso não é bom para eles. Nós temos que compreender a maneira como os garotos aprendem. Eles são, em média, mais ativos fisicamente que as meninas, mais impulsivos e competitivos, mais interessados em escrever histórias de conflito e morte, mais propensos a trabalhar duro quando cercados por grupos de meninos. Abordagens punitivas na criação de meninos não funcionam. Pais que batem em seus filhos do sexo masculino em casa apenas produzem meninos obedientes que chegam à escola prontos para usar a agressão física contra os seus pares.
Um relatório da Associação Americana de Psicologia demonstrou que a adoção de políticas de tolerância zero nas escolas não mudou o comportamento dos meninos, apenas os distanciou das mesmas. Punir os meninos constantemente retirando seus intervalos ou proibindo os seus jogos, também não funciona. Forçar os garotos a sempre cooperar e nunca competir em aula apenas os faz sentir que a escola não foi feita para eles. Se os meninos se sentem cronicamente mal compreendidos, se sofrem interferências constantes em sua forma de brincar, eles simplesmente seguem seu caminho, desistindo da escola ou se alienando dos valores do mundo adulto. Eles passam a procurar, fora da escola, experiências significativas para a afirmação de si mesmos como garotos fortes e homens saudáveis. Para muitos garotos isso significa idolatrar o líder da gangue local, o atleta popular embora anti-social, o pai abusivo. Minha experiência como psicólogo para uma escola apenas para garotos e como consultor para ambos os tipos – escolas para ambos os gêneros ou somente para meninos – me ensinou algumas importantes lições sobre o que os meninos precisam. Os meninos estão sempre famintos por modelos masculinos responsáveis e por mulheres que realmente “saquem” como eles são. Os meninos estão sempre procurando rotas que os levem a ser homens adultos respeitáveis, admirados por seus professores de ambos os sexos. Na infância, os meninos choram mais e são mais vulneráveis a perturbações em seu elo com as mães do que as meninas. Muitos deles expressam ansiedade através da raiva e do distanciamento. Precisamos compreender que a raiva dos meninos pequenos é, frequentemente, uma manifestação de medo e ansiedade.
No nível Fundamental, nas escolas, precisamos compreender que os meninos são extraordinariamente suscetíveis à vergonha. O arco de desenvolvimento dos meninos é diferente – e mais lento – do que o arco das meninas. Não devemos comparar constantemente os meninos, desfavoravelmente a estes, com as meninas ou fazer do comportamento destas o padrão ouro das escolas. Durante toda a infância, precisamos que os homens apresentem comportamentos que sirvam de modelo para os meninos como cuidadores e precisamos oferecer aos garotos a chance de cuidar de crianças mais novas.
Tom Lickona, o autor de Educando para o Caráter, disse que todas as crianças precisam querer o bem, conhecer o bem e praticar o bem. Eu acredito que dar aos meninos a chance de cuidar de crianças mais novas – praticando o bem – pode ser o mais importante passo individual no sentido de auxiliá-los no desenvolvimento da empatia. Se nós percebemos os rapazes adolescentes como sendo perigosos ou molestadores em potencial, se nós só damos a eles válvulas de escape competitivas, nunca estaremos lhes oferecendo a chance de desenvolverem sua empatia em potencial. Finalmente, na adolescência devemos ir ao encontro dos anseios morais e espirituais dos garotos. Se há uma lição para ser aprendida nas atividades violentas, terroristas de rapazes em todo o mundo, é a de que homens jovens estão sempre em busca de significado, mesmo que de formas terríveis. Se nós traumatizarmos os meninos, iremos produzir homens violentos. Se não oferecermos aos rapazes rituais significativos que façam sua passagem da meninice à vida adulta, eles inventarão suas próprias e cruéis formas de iniciação. Se apenas procurarmos controlá-los e não nos comunicarmos com suas almas, eles nos retribuirão com violência. Os meninos precisam experienciar a empatia quando são jovens, eles precisam aprender a reconhecer um comportamento empático e precisam praticá-lo.
A antropóloga Margaret Mead uma vez expressou sua admiração pelas sociedades que criam seus filhos para serem “bons pais”. Eu concordo com ela. Se nós continuarmos perseverando no objetivo de criar bons pais, os melhores instintos dos meninos serão transmitidos de geração para geração.

Publicado originalmente no Huffington Post em 3 de março de 2010. http://www.huffingtonpost.com/michael-thompson-phd/the-empathic-civilization_b_483068.html

Site do autor: http://www.michaelthompson-phd.com/

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Escrever por sobre o medo

“Demorei muito tempo para compreender porque tantos escritores são alcoólatras: porque eles têm medo.” Alain de Botton, filósofo francês mais conhecido no Brasil pelo livro “A arquitetura da felicidade”, tuitou essa frase, recentemente. Gostei tanto dela que guardei nos Favoritos, no meu Twitter. Parece bobagem, ter medo de escrever. Tanta coisa para se ter medo, medo mesmo, como assaltos, atropelamentos, acidentes de carro, seqüestros, doenças e, mais do que tudo, a morte. Alguém vai ter medo de escrever? Tenha dó.


Mas é assim que funciona. Escrever é uma coisa que põe medo. A absoluta maioria das pessoas que eu conheço que escrevem, passam por esse desconforto. É só dar uma olhada nos cursos de pós-graduação, sejam especializações, mestrados ou doutorados, para testemunhar o incômodo. É claro que a culpa desse stress também é colocada no orientador, na falta de tempo para a elaboração dos trabalhos, na complexidade ou chatice pura da bibliografia obrigatória, enfim, toda pós-graduação tem lá suas barras a serem enfrentadas. Afora o medo da folha em branco.

A folha em branco e o bloqueio criativo são dois fantasmas que rondam os escritores de ficção ou não, entidades a serem temidas. Não me refiro à escrita burocrática de qualquer natureza, aquela que está tão incorporada ao dia-a-dia de quem a escreve que não o emociona mais. Me refiro àquela que mobiliza o escritor a ponto de trazer o medo e a postergação do trabalho com toda a sorte de desculpas que simplesmente encobrem o temor de defrontar-se com a angústia que suscita a tela do Word aberta, simulacro do papel branco.

Mas afinal, o que a folha em branco provoca em nós, qual o seu poder? O poder reside no desvelamento de si mesmo aos olhos dos outros, pois, quem escreve, o faz para um público leitor, nem que este seja apenas o professor que irá ler o trabalho que estiver sendo redigido. Há casos graves de gente que não pode nem sequer despejar seus sentimentos íntimos num diário guardado a sete chaves, pois não suporta, ela própria, encontrar-se consigo através de sua escrita. Mas são casos mais raros, acredito. Expor-se a apreciação, ao julgamento dos outros é sempre difícil. Tememos o acolhimento que o outro dará a nossa escrita, mas, em que pese essa dura realidade – principalmente em se tratando de trabalhos acadêmicos que são elaborados para sofrerem julgamento – para viver precisamos em primeiro lugar do acolhimento de nós mesmas e, nesse sentido, a escrita é uma boa porta.

Um diário, seja ele dirigido a nós mesmas ou a terceiros, pode ser um importante aliado e instrumento no que conhecemos como a cura pela palavra. Essa palavra não precisa apenas ser aquela lançada oralmente, ao analista, mas também pode ser a recolhida de nossas próprias gargantas, em momentos que não pudemos enunciá-las. Uma das características adoráveis do papel é que “descansa” nosso texto que, tal como massa de pão, cresce e se dispõe a ser aprimorado. Passado um tempo o lemos como um novo texto, não só para correções de forma, coisa banal, mas para correção de trajetos. Caminhos do dia-a-dia, tão íntimos que nem os teríamos observado não fosse eles estarem ali, materializados no papel. Quando estamos com muito medo em nossas vidas, inclusive de realizar a redação de uma pesquisa extensiva, talvez uma boa forma de começar seja escrevendo sobre o que se sente. Fica a dica.

sábado, 8 de maio de 2010

Uma mãe suficientemente boa

Cuidado, sua mãe pode comer a sua vida. Ela faz todas as suas vontades, te dá tudo o que você pede, está sempre presente e disponível, ela se dedica a você, somente a você, todas as horas do dia. Sem você, a vida dela seria muito vazia e tudo que ela espera é que você seja uma boa filha, ou um bom filho. Nada que uma chantagem (zinha?) não resolva em momentos de discórdia no mundo idílico do relacionamento de vocês. Essa mãe maravilhosa só tem um detalhe que a distingue das demais. Seus olhos, chamados popularmente de espelho da alma, são, na verdade, apenas botões.


Essa é uma das mães que com que se defronta a menina Coraline, no genial filme homônimo de Henry Selick baseado no romance do inventivo Neil Gaiman, um verdadeiro autor de contos de fadas.

Há, é claro, sua mãe verdadeira, cuja atenção à menina infelizmente não chega aos pés da dedicação que lhe oferece a outra mãe, naquele mundo paralelo que gira ao redor dos desejos de Coraline. A mãe verdadeira, para mal dos males, se vê envolvida em pagar contas, cuidar da casa, trabalhar e realmente não é, nesse caso específico, a mais divertida e companheira das mães. Mas com ela Coraline tem a chance de brincar sem ser muito controlada e não chega a ser negligenciada nem por falta, nem por excesso. Essa mãe que nem sequer sabe cozinhar uma comida gostosa parece amar muito a filha, mas – que absurdo! – tem uma vida sua para cuidar também e Coraline está longe de ser um bebê, que necessita de atenção em tempo integral.

A escolha da menina é complicada. Ficar com uma mãe que se dedica somente a ela significa ser devorada viva, não poder crescer, não acalentar sonhos seus, segredos e nichos de desejos onde a personalidade se desdobra para depois florescer em aventuras pelo mundo. O que lhe reservará a vida lá fora? Com certeza nada tão aconchegante como o ninho materno que, no entanto, é pequeno para suportar seu crescimento e onde permanecerá imóvel. Talvez como a Carolina da canção, com seus olhos que guardam tanta dor (feitos de botões?) a olhar pela janela o grande e vasto mundo em movimento lá fora, tão distante de suas possibilidades. Ficar com a mãe verdadeira significa não ter seus desejos realizados prontamente, empenhar-se sozinha em tarefas que preferiria delegar a terceiros e ainda ter que aturar diariamente a tessitura dessa delicada teia que une mãe e filha, na qual se misturam amor e impaciência em doses por vezes quase que iguais.

Contudo a mãe imperfeita – que não é má e quando consegue equilibrar as contas da casa se lembra de lhe dar um presente, ou seja, não está assim tão desatenta aos desejos seus – tem um grande trunfo: oferecerá a Coraline um lar também imperfeito e, com ele, a aventura de estar viva nesse mundo, com seus defeitos e delícias. Um bom filme para o Dia das Mães.

domingo, 2 de maio de 2010

Crescer é chato

Para alguns pais o propósito da vida de um filho seria o de não os incomodar. Se ele só viver lá, na dele, e fizer o favor de não chatear, a família agradece. Item cumprido na lista de obrigações na vida, o filho está presente para completar a família, quem sabe até dividir bons momentos, mas não deve trazer problemas para casa porque o pai e a mãe já estão, eles mesmos, cheios de problemas. Ou, pelo menos, é a explicação que dão. Acontece que criança é chata. Não sei se é permitido escrever isso no jornal, mas, depois que Laura Guimarães e Juliana Sampaio abriram no livro “Mothern – manual da mãe moderna”, que parir é uma experiência punk, ouso achar que algumas outras verdades já podem ser impressas sem que sejamos tachadas de “sem coração”. Sim, eu sei que chatos são os filhos dos outros, o nosso apenas está com sono. Atender as demandas de um filho, seja ele pequeno ou grande, requer muito do espaço temporal interno e externo que poderíamos estar dedicando a nós mesmos. Isso é chato. O coração da gente também fica pequenino quando o filho está com problemas, enfim, é uma montanha russa de emoções. Será que não saber é uma boa saída, no longo prazo, para não se incomodar?

Às vezes também acontece de os pais estarem tão apaixonados um pelo outro que não há espaço para o filho irromper, como deveria, em meio a essa relação. O fato é que, seja estress ou seja, digamos, excessivo amor próprio, em certas famílias prevalece um nível de egoísmo que se furta a estabelecer contato com a chatice dos filhos. Cada um deve cuidar de si, a convivência apenas se dá pelas necessidades financeiras, compartilhamento de moradia e datas comemorativas, especialmente na presença de terceiros.

Para outros pais, não chatear não basta. O propósito de se ter um filho é aumentar o orgulho que se tem acerca da própria família. É responsabilidade dos filhos trazer elogios para casa, se possível em formato de troféus, mas também conta pontos as notas altas, os cumprimentos dos conhecidos, a excelência no rendimento em qualquer área a qual o filho venha a se dedicar. Ele é visto como uma representação da família, dos pais enquanto indivíduos e como casal e resultado direto da educação destes. Um produto da empresa, enfim. E ninguém quer colocar seu nome num produto com defeito, muito menos lançá-lo no mercado, digo, sociedade. E dê-lhe troféus na sala e fotos gigantescas que ocupam todas as paredes. Uma vez comemorada uma conquista, recomeça a angústia com a preparação para o próximo desafio. Me pergunto se alguém aceitaria tamanha pressão durante as 24 horas dos sete dias da semana, mesmo que fosse remunerado, ou seja, se fosse um emprego. Acho que não haveria filas de candidatos para esse posto. Para esses filhos, a família dos que “apenas” não querem se envolver com os problemas da prole deve parecer o paraíso.

Qual seria, então, o propósito de se ter um filho? Acho que o primeiro propósito, ou efeito colateral, é o de crescer. Não, isso não significa que quem opta por não ter filhos é necessariamente um infantilizado com síndrome de Cinderela ou Peter Pan. Mas são tantas as demandas que a criança traz, são tantas as frustrações que sofremos por ter de abrir mão da vida como ela era sem filhos para poder abraçar essa nova fase, que está correta a compreensão de que há um luto a ser realizado. Perder, para ganhar. Passa-se a olhar o mundo sob duas novas perspectivas, a de pai ou de mãe e a do ponto de vista da criança, que, por ser infantil, não tem condições de olhar o mundo de nenhum outro ponto de vista que não o seu próprio. Essa é uma condição importante que distingue um adulto de uma criança: empatia.

Há certa infantilidade naquele olhar paterno ou materno que não reconhece o desejo do filho, como uma criança que se frustra com o brinquedo que não a obedece. Ter filhos é uma condição biológica que mesmo crianças em idade púbere podem realizar. Mas, para que os filhos tenham espaço de crescimento como indivíduos, é preciso que os pais amadureçam. E amadurecer é, no mínimo, chato. Ah, mas chatos são os outros pais, nós estamos apenas estressados.

domingo, 25 de abril de 2010

Entre o medo e o desejo, o salto

Gurias dêem uma boa olhada no rapaz aí, da foto ao lado.
Permitam-me apresentá-lo. É difícil, porque quando se trata de Neil Gaiman o meu cérebro se desmancha e nem sei bem por onde começar, tantos são os elogios que me vêm à mente. Bem, além de suas mais óbvias qualidades ele é um escritor britânico. Escreve de tudo, romances, roteiros, poemas, é um destemido da escrita. Um grande e velho amor literário meu, agora renovado, uma vez que recentemente tomei coragem de ler um de seus primeiros trabalhos, a aclamada série Sandman. Ela trata de Morpheus, o Senhor dos Sonhos, e da sua perigosa, sedutora e disfuncional família composta por Destino, Desejo, Destruição, Desespero, Delírio e Morte. Não é exatamente o que chamaríamos de leitura light, mas é simplesmente arrebatadora.


Lembro que muitas vezes folheei as revistas de Sandman (sim, trata-se de uma HQ para adultos) na banca e dei uma espiadinha em seu conteúdo, aquela lidinha rápida que fazemos para decidir se vamos comprar uma obra, ou não. Bom, eu adorava o que via e o que lia! E rapidamente fechava a revista e a colocava de volta na estante. Tinha medo. E, naturalmente, um desejo imenso de continuar aquela leitura, um pouco assustadora. O racional – reduto para onde fugimos do medo – ganhava a batalha, sempre me convencia de que havia outra coisa que eu precisava ler para propósitos acadêmicos ou de trabalho e lá ia eu, com a cara de um gato que quase comeu o rato, mas ainda não.

Folheando as luxuosas páginas do meu volume do The Absolute Sandman, que acabou de chegar, achei curioso perceber que agimos de forma análoga, entre o desejo e o medo, com certos homens. Sedutores, alguns possivelmente disfuncionais, perigosos sem dúvida, há homens que não nos saem do pensamento. Em algum momento da vida todas nos deparamos com, pelo menos, um desses elementos. Damos uma espiadinha no conteúdo, na embalagem e sabemos que ali está um ser que vai chacoalhar nossas existências. Mas, por isso mesmo, temos medo. O perigo reside nas mudanças que enfrentaremos, na experiência do arrebatamento que encurta a respiração, não permitindo que o cérebro controle direito as coisas. Como reagir?

Há as mulheres que, embora temam, querem ardentemente uma experiência nova que acabe com o marasmo, algo que mude a rotina de suas existências. Seu objetivo é esse mesmo, saltar para o novo. Vence o desejo. Há outras nas quais vence o temor. Talvez estejam confortáveis e felizes em suas vidas como elas estão, ou talvez simplesmente ainda não estejam em condições emocionais de realizar mudanças profundas. E o problema de saltar para o novo é que, em se tratando de relações amorosas, não se pode planejá-las. Entregar-se, fragilizar-se, faz parte da vivência integral do processo. Assim, a cada novo amor, corre-se um novo perigo.

Com o passar da idade, contudo, amadurecemos alguns mecanismos de defesa que nos ajudam a ampliar a realização de nossos desejos, sem corrermos o risco de saltar para dentro da toca do coelho e descobrirmos, bem ao final da descida, que não há ninguém lá para amparar nossas quedas. Aprendemos, por exemplo, a observar se há redes de amparo à queda, não apenas no mundo exterior, mas dentro de nós mesmas. Estaremos em condições de afagar e cuidar de nossos possíveis machucados, caso saltemos? Qual é altura do salto que suportamos? Quão funda é a toca do coelho de Alice de cada uma de nós? Nossa coragem nos dirá.

Recentemente o adorável e tímido Neil Gaiman noivou com uma cantora americana, Amanda Palmer, notória por seu deboche e iconoclastia, que podem ser conferidos nos vídeos do espetáculo de cabaret-punk que apresentava com a banda Dresden Dolls, em Nova York, disponíveis na internet. Cabaret-punk?! Um salto e tanto. E ele está apaixonadíssimo. Acho que vamos todos, homens e mulheres, munidos de um bocado de coragem, pondo um pé na corda bamba e com o olhar buscando o equilíbrio no horizonte, realizando as mudanças que queremos, saltando da altura que podemos. O importante é o movimento. Pois até para a experiência de ler um livro a vida às vezes nos pede um pouquinho de coragem. E atendemos, quando estamos prontas.

domingo, 18 de abril de 2010

Me trata direito

Há alguns meses presenciei uma cena na saída de um restaurante em Passo Fundo, cidade onde moro, que nunca vou esquecer. Eu ia descendo as escadas em meio a muitas outras pessoas, que subiam e desciam. Era hora de movimento. Dentre os casais que subiam houve um em que a metade feminina parou, olhou na direção do namorado, marido, ou o que fosse, que já se encontrava alguns degraus à frente e falou, em alto e bom tom: “Fulano, ou você me espera e me trata direito, ou eu não vou!”. Não tenho a menor idéia do desfecho da cena. Não fiquei por ali, continuei andando no ritmo em que estava, mas adorei. A moça, uma jovem bonita, virou minha heroína pessoal.

Em que pese que não sei nada sobre o casal e provavelmente nunca os reconheceria se os visse novamente, a atitude dela me marcou porque foi de encontro a um paradigma muito comum entre nós, mulheres, que é o de não nos colocarmos em confronto com nossos homens, em público. Lançamos sobre eles o mesmo olhar que lançamos aos filhos, que parece dizer “vamos ter uma conversa em casa” e deixamos passar a descortesia, ou pior.

Claro que há os casais em que a mulher arma um barraco caso o sujeito olhe para alguma pessoa para a qual ele não tem autorização prévia de olhar – cena essa mais comum em bares – e também aqueles em que a reunião de amigos para, digamos, um jantar, se torna ocasião propícia para que a esposa apresente a todos um levantamento minucioso (e mui rancoroso) dos defeitos e das faltas cometidas pela sua cara metade. Os presentes nessas ocasiões ficam tão constrangidos que não sabem o que fazer e muito menos o que dizer e lá se vai um belo jantar à ruína, por falta de percepção do que é público acerca de um casal e do que deve ser privado.

Não estou, portanto, tomando o partido do “barraco”. Mas não me pareceu que fosse esse o objetivo da moça, aproveitar o público para começar um bate-boca. Ou, pelo menos, não foi assim que eu li a cena (interpretações são sempre muito pessoais, como sabemos). O que ela fez, eu acho, foi dar um ultimato ao rapaz naquele momento preciso, sem postergar a questão para uma possível infindável discussão em casa. Sua escolha econômica de palavras me leva a pensar assim. Ela não disse, “Fulano, precisamos conversar sobre nossa relação” nem deu chilique olhando para os lados e ameaçando chorar. Ela disse simplesmente “me espera”, o que remete ao estar junto, ser companhia e, mais importante, exigiu: “me trata direito”. Bom, aí poderíamos escrever um tratado sobre o que seria tratar uma mulher “direito” e haveria opiniões suficientes para editar volumes sobre o assunto. Mas, em se levando em conta a óbvia questão da dignidade inerente a qualquer ser humano e da amorosidade inerente às relações de um casal, o que é fundamental no caso desse “tratar direito” é o que importa para aquele casal especificamente. E importa, portanto, o fato de que se algo se tornou intolerável para aquela moça, ela falou, não postergou, não engoliu, não fingiu que não estava sentindo. E ela tinha uma saída bem à mão, para por fim ao seu desconforto: não ir juntamente com seu par. Repito, ela não se queixou dele e de como era tratada para os demais ouvirem, ela apenas determinou uma condição para sua permanência e, coisa que parece simples mas é mais complexa do que aparenta, apresentou sua retirada imediata de campo.

Admirei-a sim, pela postura, pela clareza, pela coragem, pela independência, ainda tão jovem. Na minha geração levamos mais anos para pôr em prática essas qualidades. Quero criar minha filha dessa forma, para que possa dizer de seu desejo sem dificuldades, de maneira a convidar para caminhar consigo apenas aqueles homens que não a temam, nem a manipulem, diferentemente dos covardes que esperam, pois que necessitam, que suas mulheres se calem em público para que possam fazer piadinhas infames que parecem grandes feitos aos olhos de seus amigos. Alguém aí conhece algum?

Fica então lançada a campanha, que bem pode ser para ambos os sexos: me trata direito, ou eu não vou!

terça-feira, 13 de abril de 2010

Entrincheirados na escola

A primeira vontade que se tem ao terminar de assistir Entre os muros da escola, o polêmico filme francês sobre o cotidiano de um professor de escola pública naquele país, é fazer um levantamento dos acertos e dos erros desse personagem. As opiniões pululam de todos os lados, pois as pessoas das mais variadas profissões já passaram por bancos escolares e têm suas histórias para contar. Eu, como profissional da educação, acho-o “normal”, ou seja, não distante de mim, parecido com muitos outros professores que conheço. Encontro no cotidiano profissional dele todos os pequenos dramas que conhecemos nas salas de aulas repletas de adolescentes, embora relativamente suavizados, pois que a ação se passa num país cujas mazelas da educação – pública ou privada – são bem menores que no Brasil. Lá estão o deboche, a afronta e, mais do que o desrespeito à autoridade do professor, a maquinação incessante no sentido de fazê-lo participar de um jogo em que se usam táticas de guerrilha para aniquilar o inimigo. Voa uma bolinha de papel de um lado, a caneta baixa as notas de outro. Entrincheiram-se alunos e professores. Ai de quem cai nessa esparrela. Já fiz isso e o resultado é sempre pesado, para ambos.


Acredito que o aluno que assim procede, o faz por acreditar ser essa situação inerente à relação entre professores e alunos. Ele tem problemas de relacionamento com a figura de autoridade – muito provavelmente por boas razões que concernem a sua intimidade familiar – e não tem motivos para crer que seja possível a formação de uma parceria com, senão todos, pelo menos alguns de seus professores que, convenhamos, não teriam causa a priori para percebê-lo como um inimigo. Na verdade, esse aluno adoraria ter algum professor que fosse seu companheiro, algum adulto que o escutasse, a quem pudesse confiar seus pensamentos e sonhos sem ser repreendido, criticado e humilhado, um relacionamento que fugisse da matriz que gerou sua imediata rejeição ao adulto/autoridade/professor/pai/chefe em questão, independentemente de quem seja a bola da vez.

O professor que entra nessa roubada o faz porque perdeu a cabeça, perdeu a calma que precisaria ter para lidar com esse tipo de situação. Como acontece com o personagem do filme, de forma perfeitamente compreensível. Não é o que se espera de um adulto e menos ainda de um profissional da educação, mas sabemos que ninguém é perfeito e nós, professores, temos uma profissão extremamente estressante e exaustiva. Mais exaustiva no Brasil do que nos países de primeiro mundo em função dos baixos salários, que obrigam um professor a lecionar mais períodos do que deveria ser permitido por lei, para salvaguardar sua saúde física e mental. A exaustão afeta a qualidade do relacionamento em sala de aula. Não estou exagerando.

É claro que existem os professores sádicos, os que acreditam nessa versão entrincheirada da educação e não têm o intuito de estabelecer parceria com ninguém. Esses, na minha humilde opinião, em que se justifiquem suas neuroses pessoais e por mais cultos e agradáveis que possam ser em ocasiões sociais, deveriam estar fora da sala de aula.

Além do ensino, o que está em jogo no cotidiano da profissão de educador é o delicado exercício da autoridade. É aí que mora o X da questão. A autoridade que é inerente ao exercício da profissão do professor, repousa em seu exemplo, em seu saber e na sua capacidade de abrir espaços de negociação para que a autoridade não se faça autoritarismo. No entanto, dela não se pode prescindir, nem na sala de aula, nem no Estado Democrático de Direito. Quando os que, pela detenção da autoridade, deveriam ser porto de acolhimento e farol para aqueles que estão em crescimento, se furtam a exercê-la – inclusive direções de escola, como a do filme – se abre espaço para a tirania. O bullying, por exemplo, nada mais é do que a tirania exercida entre os iguais na qual se estabelece uma hierarquia que simula o sadismo copiado do mundo adulto.

Para uma boa análise dos erros e acertos do professor de Entre os muros da escola, eu gostaria, mesmo, era de projetar esse filme para meus ex-alunos adolescentes e ouvir a opinião deles sobre os fatos. Tenho certeza de que seria uma experiência altamente esclarecedora para todos os professores. :-)

domingo, 4 de abril de 2010

A mão que afaga é a mesma que apedreja

O caso Nardoni. Os deuses todos sabem que eu não quero e não vou participar da catarse pública de revisitar cada detalhe de mais um espancamento e tortura de criança nesse país, algo que não é tão raro como gostaríamos de imaginar, para nosso próprio conforto. O espancamento terminar em morte também não é raro, é só dar uma checada nos hospitais de qualquer cidade. Não tão comum, sem dúvida, é a criança ser jogada de um apartamento de classe média tão parecido com os nossos, inclusive com as mesmas redes nas janelas, providencia que tomamos para proteger nossos filhos. É uma ironia macabra. O choque da nação e a cobertura frenética da imprensa – que vende mais quando há notícias chocantes que causem identificação do público – são compreensíveis.
Mas há uma questão que me incomoda mais que as outras em relação ao surto de violência que resultou na morte da menina Isabela. Ele não pode ter sido o primeiro. Quando ocorre o assassinato de uma criança precedido de espancamento, essa última agressão é a culminância de muitas outras. Quem acompanha casos de violência contra mulheres sabe que ninguém se descontrola uma única vez e, na primeira ocasião que espanca um membro da família, o faz até matá-lo. Isso sim, seria raríssimo. Há, na verdade, ambientes maléficos, doentios de longa data nessas famílias, onde se encontram grandes buracos cheios de dor, recobertos pelo silêncio. O silêncio é uma coisa com a qual podemos nos acostumar facilmente, mesmo porque a fala implica em reviver a memória daquilo que gostaríamos que não houvesse acontecido. O silêncio tem, então, seus confortos. É melhor silenciar do que encarar a vergonha de se pertencer a uma determinada família, é melhor silenciar do que provocar novos ataques, é melhor silenciar do que se perceber um perdedor em meio a uma sociedade que cultua a felicidade aparente. As crianças aprendem isso rapidamente. Todas sorriem para as fotos presentes nos celulares dos pais, a serem exibidas publicamente: vejam como somos felizes. Ai de quem não sorri!

Não me apedrejem ainda, não estou levando a mãe da menina assassinada a julgamento, embora aparentemente ela tenha feito vistas grossas a machucaduras anteriores. Mas me parece que houve silêncios ali, que se tornaram perigosos. Sabem quem é uma grande aliada do silêncio? A correria do dia-a-dia. É inevitável se a pressão é enorme. E não é só em virtude dos gastos com moradia, saúde e alimentação, que já nos tomam horas de trabalho bem longas. Queremos, porque somos bons pais, que nossos filhos fiquem bonitos, bem-vestidos, tenham bons brinquedos, estudem em boas escolas, pratiquem dança, música, língua estrangeira, artes marciais, esportes e, enfim, temos que pagar mais essas contas. Isso também é amor, certo? Disso também depende a felicidade do filho, acreditamos. A somar-se a tudo isso há o dado de que também nós, pais, somos gente (surpresa!) e temos aspirações pessoais que vão desde roupas para nós e cursos que queremos fazer a uma simples cervejinha com os amigos. E o dia, esse inimigo que era pra ser a medida de nossas vidas, só tem 24 horas. Essa inflexibilidade do tempo em se esticar para que possamos acrescentar mais e mais as nossas agendas – em busca da felicidade? – é que estraga tudo. A falta de intimidade e o silêncio nocivo que dela provém, é culpa do tempo. Para completar, a intimidade tem lá seus desígnios próprios e um deles, fundamental para que ela se estabeleça, é o contato contínuo e sereno. Isso complica a equação, não?

Fico triste em saber que esse é mais um caso de espancamento terminado em morte, que poderia ter sido evitado. Não estou instigando a todos que batam às portas dos vizinhos cada vez que uma criança se coloque a berrar (haveria filas na minha porta em momentos de birra da minha pequena), mas sei que nós, como sociedade, estamos falhando em proteger nossas crianças. Nesse sentido, a denúncia faz parte desse espectro, sem dúvida, bem como um maior investimento nos Conselhos Tutelares, para que possam atender à demanda provocada por aqueles poucos vizinhos, professores e parentes que ousam romper o silêncio. Esperar que a criança espancada seja a que toma a iniciativa de buscar proteção do Estado, já é pedir demais.

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Em tempo: fico feliz de saber que há profissionais no país alertando os pediatras de hospitais públicos para reconhecerem a chamada SIBE, Síndrome do bebê espancado e a Doença de Munchaussen por procuração. Vale a pena acompanhar o trabalho do Dr. Wilmes Roberto Gonçalves Teixeira. Há uma excelente entrevista dele, aqui: http://diganaoaerotizacaoinfantil.wordpress.com/2008/04/22/violencia-mata-4-mil-criancas-por-ano/

segunda-feira, 29 de março de 2010

Um futuro de pernas para o ar!

Há algumas semanas recomecei a Yoga. Toda dura. Não estou querendo dizer malhada, bonitona. É sem flexibilidade, mesmo. Não tão dura quando eu comecei pela primeira vez, há mais de três anos atrás, ocasião na qual descobri que havia me transformado no Pinocchio, o lendário boneco de madeira criado pelo solitário velhinho Geppetto, que acaba por tornar-se humano graças a Fada Azul. É impressionante o que a tensão pode fazer com a mente, refletida no corpo. Acho que é justo dizer que estava faltando um pedaço da minha humanidade, na época, pois o simples sentar na chamada “postura fácil” (que postura fácil?! eu me perguntava), me causava dor. A Yoga e a meditação foram minha Fada Azul em um importante momento de recuperação da saúde. Mas, sabe como é, assim que você melhora e vai se entregando à correria do dia-a-dia os cuidados com você mesma vão se tornando secundários.


Recomeços são meio complicados. Você pensa que está com a bola toda e... argh. Alô, dor. Alô corpo. Já faz tempo que não nos relacionávamos tão intimamente, hu? Entre paradas e retornos, o resultado é que meus pés e mãos ainda mantêm uma amistosa, mas relativamente grande, distância entre eles que eu bem gostaria de já ter ultrapassado. Respirando e relaxando a lombar, vou tentando aproximar minhas extremidades, ao mesmo tempo que procuro habitar melhor meu próprio corpo. Dentre as frases da professora, a que eu mais gosto é: “respeite seus limites”. Puxa vida, a gente deveria ouvir isso mais seguidamente no dia a dia. É tão mais comum interiorizarmos a idéia socialmente cultuada de ultrapassar nossos limites que até fiquei meio chocada a primeira vez que a ouvi dizer isso. Mas fiquei agradecida também, por saber que encontrara ali uma prática que não cultua o sofrimento, nem físico, nem mental. Acolhida em minhas dificuldades, vou respirando e relaxando.

Na minha turma há várias senhoras, com diferentes graus de habilidades físicas desenvolvidos. Algumas me parecem bem mais confortáveis do que eu com a prática, enquanto outras lutam contra o corpo enrijecido, procurando ajustar-se aqui e ali a posturas que demandam concentração e equilíbrio, bem regados a altas doses de oxigenação. É mais difícil na prática do que no papel. As senhoras parecem espelhos do meu amanhã. Admiro a todas elas. Todas estão ali, apegadas à vida, respirando profundamente, procurando fazer o seu melhor para consigo mesmas. Me pego perguntando como será meu futuro, que tipo de senhora serei. Onde estarão meus achaques? Nas pernas, nas costas, na nuca? Tornozelos inchados parecem ser quase uma certeza. Como me relacionarei com o envelhecimento inevitável? Observo-as, ansiosa por encontrar nessas outras mulheres, respostas sobre mim. Mas em seguida é hora de esvaziar a mente, fixar um ponto e concentrar-se dentro de si mesma, porque senão você cai no chão.

Há também as moças na casa dos vinte anos, em forma física invejável, do meu ponto de vista. Quando chega a hora da finalização lá se vão elas, a virar de pernas para cima, apoiando-se apenas nos braços e na ponta da cabeça. Essa posição, chamada “invertida”, ainda é um sonho para mim que me contento em apenas levantar as pernas, na “vela”. Olhando as moças penso: que tipo de velhice elas terão? Será que elas se preocupam com isso? Provavelmente não. Sou eu, na casa dos “enta” que passei a tentar visualizar um futuro que não está muito distante, agora.

Nessa hora juro que nunca mais vou parar a Yoga e junto todas as imagens que tenho à frente. Lá estou eu, uma senhora de idade, sim, mas graciosa e flexível, que ainda consegue se locomover bem sozinha. Mais do que isso, acredito que estarei em melhor forma física do que a que apresento agora e já me imagino fazendo a “invertida” no final das aulas, pernas para o ar, cabeça no chão. É meu ideal de futuro: Um dia eu ainda me viro de ponta a cabeça!

quinta-feira, 25 de março de 2010

Esquadrão da Moda - parte dois

Aqui vão algumas dicas de livros de autoria dos hosts do programa Esquadrão da Moda, versão britânica e versão americana, sobre o qual me referi no post anterior. São livros estimulantes e engraçados, por vezes um pouco torturantes para a autoestima, mas aos quais sempre acabo por retornar. Isso significa que há neles possibilidades não esgotadas, possibilidades de reinvenção de mim mesma, talvez?


O primeiro é a bíblia de Trinny e Susannah, O que você veste pode mudar sua vida. As autoras partem de seus próprios biotipos e colocam a si mesmas em outfits que vão de deselegantes a ridículos, para comprovar suas teorias de como se vestir bem. Chegam a minucias de ensinar como arrumar seu closet, organizar suas bijouterias e sapatos, enfim, manual de A a Z. Mas divertido, bem-humorado e cheio de dicas preciosas para os "sem-noção", como eu. Em inglês apenas, infelizmente, mas disponível nas livrarias brasileiras online.



Em português recomendo o hilário O que suas roupas dizem sobre você, das mesmas autoras. A gente ri, mas elas batem sem piedade. Não conheço ninguém que não tenha reconhecido a si mesma em algum dos personagens que elas apresentam/representam no livro, em algum momento da vida. Há a que se acha velha demais para se arrumar; a louca por marcas, que parece um outdoor ambulante; a sem noção de idade, que tenta competir com adolescentes; a que enfeita os filhos, embora suas roupas andem um trapo; a que se veste como os homens, porque tem vergonha do próprio corpo.... enfim, personagens que somos ou podemos ser. Imperdível.


Já os americanos Clinton Kelly e Stacey London publicaram um guia realmente completo para você encontrar o seu biotipo, seja ele qual for, e dão sugestões ótimas de como vesti-lo em termos de proporções, caimento e todas aquelas regrinhas do bem-vestir que às vezes são chatas e a gente não dá bola, e às vezes são úteis e não nos lembramos mais. Fotografando pessoas reais, que aceitaram posar para esse trabalho, eles nos apresentam possibilidades para, por exemplo, uma mulher acima do peso, alta; acima do peso de estatura média; e acima do peso, baixa. Faz muita diferença. E o mais incrível: tem uma sessão para os homens! Porque os homens não têm todos o mesmo biotipo e os ternos não são todos iguais. Parece que essa conversa de que qualquer homem de terno está bem vestido não é beeem assim. Boa leitura! 

sábado, 20 de março de 2010

Esquadrão da Moda

“O que não vestir” é a tradução mais literal de um famoso programa britânico de aconselhamento sobre moda e estilo, criado pelas politicamente incorretas Susannah Constantine e Trinny Woodall. No melhor estilo “prende e arrebenta” as apresentadoras enfiavam o pé na porta dos guarda-roupas – e também no afeto – de mulheres que precisavam de um banho de loja e estilo, com urgência. Mas eram engraçadas e o programa sempre acabava com um final feliz. A versão norte-americana ficou a cargo de Clinton Kelly e Stacy London, mordazes, mas mais atentos aos sentimentos – e possíveis processos juduciais – de seus convidados. Assisti muitos episódios de ambos os programas no canal pago People & Arts e aprendi alguma pouca coisa (pouca, mesmo), que venho mui humildemente, compartilhar. Como, graças aos deuses todos, nenhum dos apresentadores vem a minha casa para me dar uma mãozinha com as roupas, resolvi dar uma “olhada” crítica no meu biotipo e no closet no melhor estilo Trinny e Susannah: vestindo as coisas, arrancando do corpo e jogando no chão!


No decurso dessa minha investigação, acabei levantando questionamentos interessantes (e possíveis argumentações idiotas), que listo a seguir:

1) Ainda vou USAR isso?
Para início de conversa, essa é a única pergunta que existe. Todas as demais são derivadas dela. Agora, se no último ano você não esteve grávida, vivendo em outro país de clima diferente, e nada mais dramático ocorreu em sua rotina (você era lutadora de sumô, mas agora é uma alta executiva de alguma multinacional) e, mesmo assim, há um ano não veste a tal peça, a resposta, provavelmente, é NÃO. Veja bem, não estou perguntando se a tal roupa lhe cai bem, a pergunta é se você vai usar. Segunda-feira. Não se você vai usar um dia, quando for mais gorda, mais magra, mais velha, parecer mais nova, for mais alta ou finalmente tomar coragem de usar botas brancas e um colant de oncinha na rua. A pergunta é: Existe alguma possibilidade de eu sair vestida com essa roupa nessa segunda-feira? Se a resposta não for positiva, é melhor que a roupa vá para a pilha no chão. A segunda pergunta é:

2) Eu quero SER VISTA usando isso?
Porque não adianta você gostar da bota branca, se você não vai usá-la. Com exceção de algum aparato de fetiche (que também deveria ser usado na ocasião apropriada), as nossas roupas são para serem usadas em público. Se você guarda há muito tempo coisas que não tem coragem de vestir para sair na rua, talvez venha a se sentir melhor tomando uma decisão a respeito de quem você é e do que você gosta. Aí, danem-se a Trinny e a Susannah, as regras sobre o bem-vestir e o seu super-ego.
A partir da resposta a essas duas simples perguntinhas, vêm todas as armadilhas que a gente se coloca pra impedir que certas representações de si mesma possam ir para a pilha.

Uma das melhores é a da reforminha. Essa peça só precisa de uma reforminha. Você tem o hábito de ir a costureiras, tem uma costureira de confiança, você mesma reforma as suas roupas? Maravilha! Então é só pôr a peça num lugar bem incômodo, tipo em cima da tampa do vaso do banheiro, e não procrastinar a reforma. Caso contrário você só está mudando a peça de lugar e arrumando mais uma coisa na (já bem longa) lista de coisas a serem feitas, ou seja, mais um peso na consciência.

Outra muito comum é a do preço da roupa. Custou os olhos da cara, porque é da marca Xish, e então não pode ser dada. É um casaco de tweed com renda nos punhos e bordado em pérolas, com ombreiras que fazem desaparecer o pescoço em um passe de mágica, mas não se pode dá-lo para alguém pobre se aquecer, porque custou caro. E pobre não pode se aquecer com roupa cara. Todo mundo sabe que faz mal para eles. Eles inclusive se importam muito com a marca da roupa, quando estão deitados sob papelões. Algumas pessoas dizem: “é um pecado dar uma roupa tão cara!” Vai ver que é. Eu nunca entendi bem a noção de pecado.

Tem também a esperança de que a moda volte. E volte exatamente como era! Que releitura, que nada! Se você tivesse guardado todos aqueles tamancos de madeira dos anos setenta teria poupado o maior dinheiro! Em sapatos, talvez. Mas o “médico das varizes” com certeza aprovaria mais os modernos, feitos de material mais leve e bem mais confortáveis. Admitamos que não dá para guardar tudo. E pode ser que a moda até volte, mas demore uns vinte anos e as coisas que guardamos não nos sentem mais ou nem nos caibam! E a gente não vai parar de comprar sapatos porque estamos guardando os velhos para quando a moda voltar. Só vai ficar tudo mal estocado, o que já tira um bocado do prazer.

Mas a pior armadilha é o tal valor emocional da roupa. Está bem, eu admito que guardei o par de sapatos da minha formatura. Mas não dá para guardar o passado todo no closet. Nem sei se é saudável. Algumas coisas são guardadas por sentimento de culpa. Essas devem ser as primeiras a ir para a pilha. A gente nem precisa se preocupar muito, o nosso passado não nos abandona assim, no mais. Segunda-feira ele está lá, na batalha, junto com a gente. Mas a roupa provavelmente não, então... empilha no chão! Há aquela roupa ou calçado maravilhoso, no qual você se achava linda, mas que você quase nem usou e agora está démodé, ou não serve direito, e você tem pena de dar. Bom, eu decidi que o testemunho da minha falta de auto-estima não deve ficar no meu guarda-roupa. Que me sirva de lição vê-lo ali, na pilha. Por quê? Vai me dizer que não é falta de auto-estima não ter usado uma roupa na qual você se achava lindíssima?!
As pessoas são diferentes e vai ver que sou uma das poucas mulheres que conheço cujos hábitos neuróticos proporcionariam um enfrentamento desses com seu closet. Mas há tempos entendi que não adianta guardar roupas para o caixão, seja qual for o estilo de vestir que se tenha. Dos enfrentamentos que podemos ter conosco esse é dos mais divertidos. Caso haja algo nesse relato com o qual você se identifique, recomendo a experiência, pois faz bem para outros e, com bom humor, para você também! :)

Artigo publicado no jornal O Nacional em 21/03/2010

quarta-feira, 17 de março de 2010

Plantar uma árvore, escrever um livro, ter um filho

“Fulana está muito bem, noiva de um médico!”. Era o que eu costumava ouvir as tias falarem quando queriam dizer das realizações das filhas. Namorando firme um “doutor” também era uma variante do mesmo tema que enchia de orgulho as senhoras daquele tempo. Mas isso era antigamente, quando eu era pequena e as pressões sobre a existência feminina e o altar eram imensas, certo? Mais ou menos. Parece-me que as exigências sociais para que as mulheres – e os homens, também – se adéqüem a padrões generalistas e reducionistas não saiu completamente da pauta.


A coisa começa se você está namorando alguém há algum tempo e as perguntas de quando vai ser o casamento ou se estão pensando em morar juntos se tornam inevitáveis nas reuniões de família. Caso venham a se casar, no Natal seguinte você ouvirá algumas piadinhas e também perguntas diretas acerca de para quando você está planejando engravidar. Não espere demais, lhe dizem, de forma bem-intencionada. Okay, você se casou, tem um filho e pensa que não há mais nenhuma exigência pública nessa área. Talvez reclamem que você ainda não plantou uma árvore ou escreveu um livro. Mas aí começa a pressão pelo segundo filho. “Só vão ter esse?!” as pessoas perguntam espantadas e lhe contam histórias terríveis sobre solidão e velhice. É possível que alguém puxe a arenga da necessidade de ter uma menina, para que essa ampare os pais idosos. Quando ouço isso me pergunto se as obrigações femininas já vêm tatuadas invisivelmente na nossa pele quando nascemos e também por que não conseguimos (será mesmo?) criar filhos homens suficientemente íntimos e empáticos para com suas famílias.

Uma amiga que aparentemente teria completado o checklist da felicidade familiar aos olhos dos outros – isto é, casamento e dois filhos, um menino e uma menina – uma vez me disse que ainda lhe exigem mais um acréscimo familiar: um cachorro. Ou seja, se não estiver idêntica a propaganda do banco tal, nossa foto ainda não está boa! Esse tipo de pressão é muito chata, para usar um adjetivo suave, porque, definitivamente, ainda há muitas mulheres e homens respondendo a ela. E, na vida real, existem mulheres que acalantam a idéia de ter um companheiro de vida mas não querem, necessariamente, se casar. E muitos casais não querem ter filhos, o que é perfeitamente normal, pois existem muitas vantagens em não tê-los, e tê-los, sem querê-los, é de uma irresponsabilidade que beira a crueldade. Isso vale também para os cachorros.

Não existe receita de felicidade do tipo tamanho único: uma peça veste a todos os corpos. Existe, isso sim, muitas revistas femininas com receitas de onde encontrar a felicidade e um mito de família perfeita que perpassa o imaginário coletivo. Esse mito é particularmente danoso para as mulheres porque nele somos mães de família inigualáveis, profissionais bem sucedidas, amantes ardorosas, bem vestidas, bem penteadas, corpos esculpidos, posamos ao lado de filhos e marido sorridentes e enormes cachorros que nem cabem nos apartamentos modernos. Click. É só uma imagem. Quando se apaga o flash cada um sai para um lado. Talvez a mulher more sozinha e vá para a balada com as amigas. Talvez ele seja casado e não queira ter filhos, prefira a liberdade de viajar para lugares distantes sempre que possível. As crianças talvez morem com os avós, ou com a nova família do pai e o cachorro possivelmente volte para o canil de seu criador, que o aluga para peças publicitárias. E não necessariamente essas são cenas de infelicidade, incompletude e solidão. Deve haver tantas possibilidades de viver bem quanto existam pessoas na face da terra. Que cada um possa construir a sua, inclusive sem culpa por não plantar uma árvore em tempos ecologicamente corretos e sem se sentir ignorante por não escrever um livro.

Artigo publicado no jornal O Nacional em 14/03/2010

Nada do que é literatura me é estranho

Tenho visto em mim mesma o poder que a leitura do texto literário pode exercer, em escalas, poder-se-ia dizer, grandiosas. Tenho ouvido o retumbar de tambores, tenho sentido os tapetes se esvanecerem sob meus pés, tenho visto as tempestades se aproximarem e obscurecerem o sol em questão se segundos. Também tenho sentido macios cobertores me acolherem e aquecerem do frio cortante e mãos hábeis me secarem com cuidado, recolhendo-me da chuva gelada. Felizes chuvas de verão, mornas e libertadoras têm se abatido sobre mim, bem como ventos enlouquecedores que provocam a perda do sentido de quem se é e de onde se está. Areias que enterram ou desenterram sonhos grandiosos se movimentam sem parar e ondas gigantescas varrem certezas que julgava serem pontos de apoio do meu julgamento de mundo. Há praias mansas também, pores-do-sol e luares feitos sob medida para viver um grande amor e lareiras crepitantes na frente das quais me enrodilhar com um gato ou um cachorro, seja da espécie humana ou não. Tudo isto sem sair de casa. E não é de hoje. Essa vida dupla, que enche minha vida real de mais mistério, mais clareza, maiores questionamentos e novas percepções da realidade, está ao alcance de todos os que gostam de histórias.


Sempre li ficção, fosse ela alta ou baixa, gorda ou magra, crente ou iconoclasta. Li clássicos, sim, mas não li todos os assim chamados e não creio que seja um pecado não tê-los lido, seja em que idade for. Li e leio cultura pop e best sellers também e encontro ali coisas ótimas. E a razão é bem simples: não há como saber de onde surgirá o soco que se dirige ao estômago do leitor e nem se sabe se ele irá desviar-se ou ser atingido em cheio. A vivência que vem do texto literário, seja ele aclamado pela academia ou arrasado pela crítica a ponto de não ser considerado “literário”, pertence ao leitor e tão somente a ele. Essa vivência que enriquece a minha vida e de outras tantas mulheres, é que me encanta, não a crítica. Curiosamente, tenho encontrado poucos homens adultos envolvidos com o texto ficcional, afora aqueles que fizeram da área da Literatura e congêneres seu ganha-pão. Há teorias bem interessantes que explicam porque os homens se interessam mais pelo texto informativo em detrimento do ficcional. Uma delas é a da psicologia cognitiva que, se bem compreendi, considera as mulheres mais empáticas do que os homens, possuidoras de um leque emocional mais amplo em termos de percepções de sentimentos e, por isso, a literatura lhes parece mais atraente, posto que compreendem melhor os meandros e camadas presentes em tramas e personagens ficcionais. Se isto for verdade, ainda que parcialmente, somos nós, as mulheres, boas leitoras da vida não ficcional e, assim, naturalmente intérpretes de mundo nas nossas famílias. Conheço muitas intérpretes familiares que acodem aos pais, que podem estar tendo dificuldades em ler as modificações cada vez mais velozes na sociedade; aos cônjuges, aos quais apresentam as entrelinhas de fatos que eles julgavam unidimensionais; e aos filhos, a quem se incumbem de apresentar toda a gama de cores que conseguirem perceber, no mundo. A leitura, muitas vezes um tempo roubado para nós mesmas e visto até com desprezo em certas famílias, devolve em dobro. Por isso, deixem-me ler em paz, ler seja o que for pois me humanizo, nada do que é literatura me é estranho.

Artigo publicado no jornal O Nacional em 07/03/2010