sexta-feira, 16 de julho de 2010

Nada a temer

Antigamente, mas não muito antigamente, as pessoas acreditavam que não se devia pronunciar a palavra câncer. Dizia-se “aquela doença”, temia-se que a invocação do nome trouxesse a “coisa ruim” para junto de quem a pronunciou. A mesma coisa ocorria – e ainda ocorre – com o vocábulo Diabo. Há até um produto utilizado para desentupir ralos e pias chamado Diabo Verde, cujo nome uma senhora que limpava a minha casa se recusava a falar. Da primeira vez eu custei um pouco para saber o que estava acontecendo, depois entendi e respeitei, mesmo achando que é ignorância atribuir a uma palavra poderes extras além da idéia que aquele conjunto de letras e sons representam. No entanto, compreendo que é justamente por representar idéias que as palavras impactam as pessoas com tanta força e é o imaginário de cada um que as torna positivas, negativas ou inócuas.
Fico triste ao perceber que feminismo é uma palavra que não anda com boa conotação no imaginário das classes médias. É uma pena. Devemos ao feminismo – um movimento que modificou o imaginário e, por isso, o mundo – muitos dos direitos que nós mulheres ocidentais desfrutamos, como o de sermos indivíduos com características próprias de nosso gênero e com aspirações outras que não necessariamente as mesmas que aquelas do sexo masculino sem que, em virtude dessa diferença, nossos Direitos Humanos possam ser de alguma forma pisoteados.
Nas rodinhas de amigos, contudo, se você se declara feminista o pessoal fica meio cabreiro. Temem discursos inflamados, rancores contra o masculino, recalques pessoais jogados na mesa de jantar. Acredito, sinceramente, que não há o que temer e que essa época de catarse das emoções aprisionadas já passou há muito tempo. Mas o feminismo, esse questionador do lugar e das necessidades das mulheres na sociedade, ainda tem muito que fazer.
Tomemos o caso de Eliza Samudio, por exemplo, que teve um filho com Bruno, o goleiro do Flamengo que está sendo investigado como provável mandante de seu assassinato. “Maria Chuteira”, acusam-na, como se o fato de manter relações com jogadores de futebol com vistas a ascensão social justificasse o crime cometido contra ela. Bruno, que ganha salários que seriam incompatíveis com a importância de sua atividade se vivêssemos numa sociedade saudável, desfruta da posição de herói popular nos meios que freqüenta. Muitos torcem sinceramente pela sua libertação, da mesma forma que outros torceram por Polanksi, o genial diretor de cinema que estuprou, aos 43 anos de idade, uma menina de 13. As chamadas celebridades, acreditam seus pares e admiradores, estão acima da sociedade e, portanto, das regras nela existentes para a proteção de mulheres e crianças, dentre outras.

Uma das tarefas mais importantes do feminismo no mundo atual está na educação de mulheres de todas as classes sociais para que compreendam em profundidade que não é aceitável serem agredidas verbal, física ou psicologicamente. Que entendam que um empurrão, um xingamento, uma ameaça, não é admissível. Que o não acesso aos bens da família, ao dinheiro do dia-a-dia, não está correto. Que uma adulta não deveria precisar de permissão para ir e vir, pois é direito garantido constitucionalmente a todos. Que as decisões nas famílias devem ser negociadas e que sexo não é moeda de troca fora dos círculos de prostituição. Essas mulheres educadas e conhecedoras de seus desejos são as que modificarão o estado das coisas, inclusive na forma de criar seus filhos e filhas. Uma vez tendo seus horizontes ampliados e sabendo-se detentoras de direitos, compreenderão que não reside em “Brunos” suas possibilidades de uma existência digna. Quando as mulheres detêm poder sobre suas próprias vidas a sociedade se eleva, os valores progridem e os “Brunos” do mundo são colocados em seus devidos lugares de importância. Por isso, caros leitores e leitoras, não há o que temer do feminismo. Certo?

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Por entre as frestas

Feche a mão em concha e coloque um pouco de leite nela. Observe que se você não apertar os dedos com força, o leite escorrerá pelos espaços entre os dedos. Há uma expressão em inglês, “slip through the cracks”, que sempre me traz essa imagem à mente. Para ser sincera, sei que traduções como “escorrer por entre as fendas”, “escapar por entre as brechas” e muitas outras que podemos encontrar no Google para essa frase são inadequadas, embora todas elas possam invocar imagens muito, muito interessantes. Na verdade, a expressão se refere comumente a um tipo de falta de atenção que pode provocar o afastamento de um indivíduo em relação a um grupo num determinado ambiente, como numa escola ou numa família.
Todas as escolas, assim como todas as famílias, apresentam rachaduras. São espaços de desatenção, aberturas outras pelas quais se pode passar além das institucionalmente desejadas e criadas, como as portas e as janelas. Ao adentrarmos pelas portas e nos debruçarmos nas janelas estamos no espaço onde somos vistos, reconhecidos, onde dialogamos com os outros em ambientes bem iluminados. O local das rachaduras, das frestas, não é assim. É mais escuro e lá reinam o esquecimento e a não nomeação das coisas, principalmente das que nos incomodam. O cantinho das frestas é onde nos escondemos quando a auto-estima está lá em baixo e não temos condições de suportar a entrada pela porta.
Em meios extremamente rígidos, onde as portas e janelas estão fechadas e a iluminação não é convidativa ao diálogo, as frestas são os lugares pelos quais as pessoas fogem, numa tentativa de salvaguardar sua individualidade do esmagamento. Sem dúvida esses não são ambientes saudáveis, se o “ser” não pode entrar pela porta da frente, respeitado em suas peculiaridades.

Nas escolas e nas famílias atuais, contudo, é um pouco mais raro encontrar tamanha rigidez que as frestas se tornem janelas pelas quais se pulem. O que é muito mais comum acontecer é a criança ou o adolescente escapulir pelas brechas da superlotação das salas de aula, pelo baixo número de cuidadores e professores, pela incompetência em se perceber emocionalmente o aluno – mesmo o que apresenta boas notas – pela falta de tempo dos pais e dos cuidadores domésticos, pelo excesso de cobranças, pela escassez da convivência.
O preço de se perder alguém pelas frestas do sistema, seja ele qual for, é a alienação física e emocional desse indivíduo que, no entanto, não está em condições de ficar sozinho, ainda que seja esse seu brado. É impossível e mesmo não desejável dar atenção a tudo e a todos ao mesmo tempo. Mas é importante perceber o afeto escorrendo por entre os dedos a tempo de reter na mão o líquido precioso que constrói, alimenta e aprofunda as relações de vida.