domingo, 18 de abril de 2010

Me trata direito

Há alguns meses presenciei uma cena na saída de um restaurante em Passo Fundo, cidade onde moro, que nunca vou esquecer. Eu ia descendo as escadas em meio a muitas outras pessoas, que subiam e desciam. Era hora de movimento. Dentre os casais que subiam houve um em que a metade feminina parou, olhou na direção do namorado, marido, ou o que fosse, que já se encontrava alguns degraus à frente e falou, em alto e bom tom: “Fulano, ou você me espera e me trata direito, ou eu não vou!”. Não tenho a menor idéia do desfecho da cena. Não fiquei por ali, continuei andando no ritmo em que estava, mas adorei. A moça, uma jovem bonita, virou minha heroína pessoal.

Em que pese que não sei nada sobre o casal e provavelmente nunca os reconheceria se os visse novamente, a atitude dela me marcou porque foi de encontro a um paradigma muito comum entre nós, mulheres, que é o de não nos colocarmos em confronto com nossos homens, em público. Lançamos sobre eles o mesmo olhar que lançamos aos filhos, que parece dizer “vamos ter uma conversa em casa” e deixamos passar a descortesia, ou pior.

Claro que há os casais em que a mulher arma um barraco caso o sujeito olhe para alguma pessoa para a qual ele não tem autorização prévia de olhar – cena essa mais comum em bares – e também aqueles em que a reunião de amigos para, digamos, um jantar, se torna ocasião propícia para que a esposa apresente a todos um levantamento minucioso (e mui rancoroso) dos defeitos e das faltas cometidas pela sua cara metade. Os presentes nessas ocasiões ficam tão constrangidos que não sabem o que fazer e muito menos o que dizer e lá se vai um belo jantar à ruína, por falta de percepção do que é público acerca de um casal e do que deve ser privado.

Não estou, portanto, tomando o partido do “barraco”. Mas não me pareceu que fosse esse o objetivo da moça, aproveitar o público para começar um bate-boca. Ou, pelo menos, não foi assim que eu li a cena (interpretações são sempre muito pessoais, como sabemos). O que ela fez, eu acho, foi dar um ultimato ao rapaz naquele momento preciso, sem postergar a questão para uma possível infindável discussão em casa. Sua escolha econômica de palavras me leva a pensar assim. Ela não disse, “Fulano, precisamos conversar sobre nossa relação” nem deu chilique olhando para os lados e ameaçando chorar. Ela disse simplesmente “me espera”, o que remete ao estar junto, ser companhia e, mais importante, exigiu: “me trata direito”. Bom, aí poderíamos escrever um tratado sobre o que seria tratar uma mulher “direito” e haveria opiniões suficientes para editar volumes sobre o assunto. Mas, em se levando em conta a óbvia questão da dignidade inerente a qualquer ser humano e da amorosidade inerente às relações de um casal, o que é fundamental no caso desse “tratar direito” é o que importa para aquele casal especificamente. E importa, portanto, o fato de que se algo se tornou intolerável para aquela moça, ela falou, não postergou, não engoliu, não fingiu que não estava sentindo. E ela tinha uma saída bem à mão, para por fim ao seu desconforto: não ir juntamente com seu par. Repito, ela não se queixou dele e de como era tratada para os demais ouvirem, ela apenas determinou uma condição para sua permanência e, coisa que parece simples mas é mais complexa do que aparenta, apresentou sua retirada imediata de campo.

Admirei-a sim, pela postura, pela clareza, pela coragem, pela independência, ainda tão jovem. Na minha geração levamos mais anos para pôr em prática essas qualidades. Quero criar minha filha dessa forma, para que possa dizer de seu desejo sem dificuldades, de maneira a convidar para caminhar consigo apenas aqueles homens que não a temam, nem a manipulem, diferentemente dos covardes que esperam, pois que necessitam, que suas mulheres se calem em público para que possam fazer piadinhas infames que parecem grandes feitos aos olhos de seus amigos. Alguém aí conhece algum?

Fica então lançada a campanha, que bem pode ser para ambos os sexos: me trata direito, ou eu não vou!