sábado, 24 de dezembro de 2011

A merry little Christmas

Os dois Natais mais memoráveis que já passei como adulta não envolveram grandes festejos até porque, para ser sincera, o número de participantes era bem reduzido. No primeiro só havia eu. Eu, um copo de vinho, uma comida de minha preferência e música e televisão do meu agrado. Eu e uma enorme sensação de liberdade. Eu e um aconchego que construí para mim mesma, uma paz interior, a sensação de que estava no lugar certo, num momento bom, fazendo a coisa certa para mim.

No segundo Natal já éramos cinco. Dois humanos adultos, uma trochinha em meus braços, também conhecida como bebê, e dois cachorros. Uma família recém formada, sentada na sacada, no silêncio da noite (embora sempre haja a televisão ao fundo), observando a cidade. Mais uma vez senti uma grande paz interior, daquele tipo que te diz que você está fazendo a coisa certa e te conecta com o presente, eliminando mágoas do passado e anseios futuros. Não dura muitíssimo esse momento, essa conexão com você mesma e com o presente, logo o cérebro vagueia. Mas a sensação de felicidade permanece de tal forma que é sempre rememorada.

Há uma música em inglês, cantada pela Judy Garland em um musical dos anos quarenta e subsequentemente gravada por Frank Sinatra e muitos outros ótimos intérpretes chamada Have yourself a merry little Christmas, algo que poderíamos traduzir muito livremente como Tenha um feliz e pequeno Natal para você. A letra diz: tenha um feliz e pequeno Natal; Permita que seu coração esteja leve; Ano que vem todos os nossos problemas terão desaparecido. Trata-se de um pequeno e propositado autoengano, da escolha por um momento de felicidade que independe de estarmos rodeados de muitos amigos e familiares ou não, de estarmos bem vestidos em uma festa chiquérrima, de pijama em casa ou ainda no avião ou na estrada, sonhando com a chegada. Independe porque é uma construção interna e é no interior da gente que a paz pode ser verdadeiramente construída, antes de alçar asas para o mundo exterior.

Tendo crescido numa família numerosa, onde sempre nos reuníamos, enfeitávamos o pinheiro de Natal (alguém mais colocava algodão nas pontas dos galhos para imitar neve?) e fazíamos ceia, pode parecer estranho que me agrade um pequeno e feliz Natal, mas é esse que gostaria de desejar a você, leitor. Se você comunga de uma fé, desejo que em algum momento do seu Natal você possa encontrar-se sozinho com ela e que isso lhe traga grande harmonia. Se você não comunga de fé alguma, desejo que em algum momento do seu Natal você possa encontrar-se sozinho consigo e que isso lhe traga grande paz interior.

E desejo que todos tenham um grande, inusitado, tradicional, farto, simples, agitado, tranquilo, acompanhado ou só, pequeno e feliz Natal, que possa inclusive iluminar o ano que virá.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Propaganda Enganosa

O casal vai caminhando na minha frente num local superlotado que impõe a proximidade física. E eu ouço a conversa deles. Não é um grande diálogo, pois a moça fala muito e o rapaz silencia. Ela está falando muito mal de uma Fulana que, pelo que compreendi, tem uma vida sexual mais diversificada e, possivelmente, mais divertida que a dela. O ponto de vista da moça, uma jovem bonita, é incrivelmente machista e coroado por bordões desse tipo de discurso, como o de chamar uma mulher cuja vida sexual não se encaixa nos padrões de moralidade de quem a julga de “galinha”, para apresentar um exemplo ameno dentre os muito utilizados.

O que a moça estava fazendo naquele discurso/fofoca pormenorizado contra a Fulana era apresentar um propaganda, no meu entender bem ruinzinha, da sua pessoa para seu companheiro. Algo na linha do “eu não sou como a Fulana, lhe sou fiel e não acharás outra como eu”. De doer. Que tristeza uma mulher recorrer ao machismo para procurar ressaltar seus atributos a um homem. Que pobreza atacar a liberdade sexual que as mulheres tão duramente conseguiram conquistar na esperança de manter um companheiro junto a si.

Darwin explica, sem dúvida, esse comportamento que nos é tão natural: competir contra as demais mulheres. Nossas antepassadas tinham de escolher o homem mais apto a manter a prole ou não sobreviveriam nas cavernas e nas sociedades pós-cavernas. A contrapartida era garantir ao homem a paternidade dessa prole, ou ele não teria razão para sustentá-la. “Lhe sou fiel”, portanto, era condição fundamental de sobrevivência.

Hoje, no entanto, agredir outras mulheres e recriminar seu comportamento numa tentativa patética de se apresentar como a verdadeira “mulher de César” – aquela a qual não basta ser honesta, é preciso parecer honesta – é, no mínimo, uma técnica ultrapassada e prejudicial de “venda de um produto”, se me permitem a comparação. Talvez até funcione junto a muitos homens, mas é ruim para todas nós, mulheres.

Por que, ao invés de desancarmos a concorrência, não colocamos nossos esforços em nós mesmas? Não é melhor poder dizer “oi, sou bacana, bonita, inteligente, boa de cama, culta, leal (qualidade essencial que as pessoas reduzem a ‘monogâmica’) e não acharás outra como eu”, do que “as outras mulheres não prestam”? Assim poderíamos produzir um maior respeito de nossa parte para com as demais mulheres, quer sejam elas virgens, prostitutas, libertárias, monogâmicas, partidárias do relacionamento aberto, bissexuais, homossexuais, heterossexuais, jovens, velhas.

Vivemos numa sociedade altamente agressiva com as mulheres. Essa agressividade certamente diminuiria se nós não a incentivássemos através do preconceito. Todas as mulheres que estiverem vivenciando sua sexualidade consensualmente merecem nosso respeito. Discordância? Natural. Ataque? Nem pensar. A vida muda muito e mudamos com ela. Bobagem atirar a primeira pedra ou dizer “dessa água não beberei”. Recriminamos os homens quando assumem comportamentos que os aproximam dos primatas. Não sejamos nós, mulheres, o elo mais frágil da corrente, corresponsáveis por estimulá-los.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Raiva de mãe

A raiva que ela tem guardada dentro de si é enorme. Um Aconcágua de mágoas. De memórias mesquinhas, de desaforos não ditos, de raiva contra o destino que não obedeceu seus ditames um tanto quanto infantis, de ódio do ex-marido e do rumo que a vida do filho tomou, penalizando a sua própria. Então ela resolve escrever suas dores em cartas dirigidas ao ex-marido, missivas repletas de dor e muita, muita raiva. Embora esteja longe do desfecho da história, o que mais me mobiliza na leitura de Precisamos Falar Sobre o Kevin (Lionel Shriver, editora Intrínseca) é a demolição metódica do passado familiar realizado pela personagem mãe, a autora da correspondência, regada a muita raiva e profunda incapacidade de apego ao filho, um estranho saído, ironicamente, de suas entranhas. Não chega a ser um caso raro.

“Não está nada bem, essa mãe”, nos dizemos. “Sem dúvida é louca”, é a afirmação mais frequente nos fóruns de debate sobre o livro, possivelmente por ser a que mais traz alívio imediato. Trata-se de uma leitura perturbadora precisamente por provocar clarões de empatia em qualquer mãe que venha a lê-la com honestidade. Por isso acorremos em nos diferenciar dessa mãe monstruosa, desequilibrada, raivosa, para garantirmos a nós mesmas que jamais seriamos assim. Mas temo que nos iludamos com muito fervor. A raiva não é um sentimento ausente no exercício da maternidade. A frustração, a mágoa, o entorpecimento que faz esvanecer os gestos de carinho são mais frequentes do que gostaríamos de admitir, mesmo em mães de classe média que, aparentemente, não teriam maiores preocupações como a da garantia da sobrevivência.

O isolamento e a frustração decorrentes da maternidade, e a demanda permanente de atenção que raramente é dispensada a si própria (elevada ao cubo quando a mulher trabalha fora de casa) podem ser devastadoras para a mulher. E aquela mãe sorridente na saída da escola do filho, carregando mochilas, sacolas de supermercado e o mundo nos ombros pode estar prestes a explodir. E pode inclusive não explodir, mas certamente acabará em lágrimas. A raiva é, muitas vezes, a antessala da depressão.

Para tentarmos compreender um sentimento tão forte como a raiva, podemos atribuir aos outros, aos que nos cercam, problemas que estão no cerne de quem nós realmente somos, das escolhas de vida que fizemos e das quais podemos estar arrependidas. Nessas situações diálogo é um bote salva vidas. E diálogo é um luxo ao qual muitas mães não tem acesso. Qual é a saída? Escrever, como faz a mãe do livro que estou lendo, é uma possibilidade. Talvez um blog com pseudônimo seja uma porta para estabelecer um diálogo com outras pessoas em situação semelhante. Há quem sugira acalmar a mente com técnicas meditativas. É uma boa ideia. Até kickboxing é uma ideia mais produtiva do que destilar a raiva sobre os familiares. E, em tendo chance, um bom terapeuta fará toda a diferença na vida não só da mãe, mas de todos os que dependem emocionalmente dela. O melhor presente que se pode dar aos filhos, creio.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Aconselhamento

Li no blog de um pai o conselho para que não se deixasse passar a oportunidade de conversar com os filhos, diariamente. Esse pai preconizava que, nem que fosse antes de dormir, os pais sentassem à beira da cama e conversassem com os filhos sobre as coisas importantes da vida, aconselhando-os. Legal. Nem sempre possível de colocar em prática, mas bem pertinente o conselho. Se rolar umas quatro vezes por semana, a conversa essa, a beira da cama, já é uma enorme aproximação entre pais e filhos que muitas vezes são pessoas que moram na mesma casa, mas não conseguem estabelecer um diálogo. Mas, embora concordando em tese com esse pai, algo me incomodou.

Início dos anos oitenta. Estou sentada sozinha no chão do quarto que divido com minhas irmãs, manuseando meus poucos e preciosos LPs. A porta de repente se abre de chofre e meu pai me observa com uma feição meio esquisita. Permanece alguns segundos em silêncio e me pergunta o que estou fazendo. – Nada, respondo. É claro que estou fazendo algo importante para uma adolescente, mas essa é a resposta padrão, a que oferece um salvo conduto meio precário, uma vez que estabelecido que você não está fazendo alguma coisa uma tarefa lhe será imediatamente impingida, como secar a louça ou estudar. Ainda assim, é uma resposta que lhe resguarda de ter que começar uma conversa. É boa o bastante.

Mas ele não vai embora, nem me manda fazer algo “de útil”. Observo seu rosto contorcido quando me pergunta já meio exasperado: “você precisa de alguma coisa?!” Ih, definitivamente essa conversa vai render em chateação, então respondo “não”, rapidamente. Agora estou em território minado. Então, num esforço inesperado meu pai atropela uma frase mais ou menos como “Bom, se você precisar falar alguma coisa, pode falar!” e se vai. Enquanto tento compreender o que diabos foi aquilo, decido que o curso de ação mais seguro é ir assistir TV na sala com a família. Nada como adotar a atitude dos demais quando você quer passar despercebida.

Hoje, adulta, é com um misto de carinho e dó que reconheço a angústia de meu pai tentando estabelecer um diálogo com a filha adolescente, se lançando em uma tarefa da qual ele desconhecia as características mais básicas, por nunca tê-las vivenciado. Tendo ficado órfão ainda criança, conhecia muito da vida e sempre foi farto em conselhos, afinal, tinha muito o que contar. Mas não necessariamente abundava em espaço de escuta.

E é isso que me incomoda no aconselhamento à beira da cama preconizado pelo bom pai – como o meu – do blog lido a partir de uma postagem no Twitter. Por isso, ouso um pequeno adendo. Aos pais, nessa conversa, caberia mais ouvir do que falar e reagir com brandura aos pensamentos e acontecimentos apresentados que lhe fossem inesperados e incômodos. Talvez então o aconselhamento pudesse florescer no pantanoso terreno do crescimento, no qual a admoestação dificilmente vinga.

domingo, 2 de outubro de 2011

Uma porta para dentro

Ante-sala de consultório médico. Depois de certa idade você começa a passar mais tempo nesse tipo de lugar e consequentemente a valorizar mais o material de leitura lá disponibilizado. Quando a angústia é grande, as revistas de conteúdo leve são mais procuradas do que, digamos, aquelas que se destinam a fazer propagandas de remédios para doenças que você teme apresentando imagens de idosos felizes. Ou das que tentam convencer você a fazer sexo selvagem por meio de questionário sobre suas preferências. Perdão, mas não tem clima. Eu realmente apreciaria que os médicos pensassem mais no tipo de público que atendem e buscassem materiais de leitura adequados a esses clientes. Questionário sobre preferências sexuais em ante-sala de ginecologista, por exemplo, não animam para a realização do exame. Quem diria.

Folheando uma publicação sobre celebridades leio uma entrevista do tipo bate bola, ou seja, perguntas toscas e respostas curtas. Ou o inverso. Mas vá lá, a ideia é de um perfil rápido e raso do entrevistado, nada muito complexo. Mesmo assim me parece cretino solicitar a pessoa que defina a si mesma numa frase. Como se essa tarefa fosse possível. Como se a definição que uma pessoa cria acerca dela mesma pudesse açambarcar mais do que meias verdades e, em uma única frase, quiçá um quarto de verdades. Fico imaginando alternativas para melhorar aquele tipo de entrevista. Difícil, dado que o objetivo não é aprofundar nada. Contudo me ocorre que uma experiência interessante seria definir a nós mesmos com base naquilo que tememos.

Nossos medos, que dizemos ser algo do qual gostaríamos de nos livrar, também são parte daquilo que nos define e, assim, não são artigos dos quais realmente desejemos nos separar. Quem sabe nosso maior desejo resida em não ter de enfrentá-los. Eu tenho medo de dentista, portanto, contanto que eu não vá ao dentista, meu medo não me incomoda. Claro que é uma decisão de avestruz, pois mais cedo ou mais tarde todos nos defrontamos com nossos medos, inclusive o principal, da finitude. Mas adiamos esse encontro o mais que pudermos.

Todos temos medo e tememos muito, inclusive a celebridade bola da vez, que nas páginas das revistas parece exibir a capacidade de dar conta de tudo o que vier. Acredite, ela não tem esse dom. Entre o presente momento de qualquer ser humano – por mais maravilhoso que seja – e o próximo passo a ser dado em termos pessoais, profissionais ou em qualquer outro campo, paira o medo. E não há como não dar o próximo passo, pois mesmo o permanecer imóvel é também uma decisão. O medo de decidir pode ser paralisante ou não, mas ele se faz presente. No mais das vezes nosso esforço consiste em não olharmos de frente para o medo, mas sim de canto de olho, enquanto nos movimentamos dolorosamente. Nossos temores maiores embaçam nossa visão de nós mesmos e defini-los, nomeá-los, requer grande coragem, embora eles coubessem em frases bastante objetivas. Isso, se conseguíssemos encará-los de frente. Se vocalizássemos suas existências para além da bruma que se forma na mente no momento em que abraçamos essa tarefa.

Ao conseguirmos identificar e vocalizar um medo profundo sem atenuá-lo, justificá-lo ou nos culparmos, abrimos uma pequena mas poderosa porta para dentro. Uma fresta para o eu através da qual muito pode escapulir. Muitos novos passos. Uma vida nova talvez.

Abre-se a porta do consultório. Minha coragem, agora, se resume a comandar meus passos na direção de enfrentar sorridente o dentista, embora mil vezes preferisse alçar voo pela porta que dá para a rua, para fora de mim.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Amar a Barbie

Depois de anos torcendo o nariz para as bonecas Barbie recentemente vivi meu momento “I love Barbie” e foi muito sincero. A bonequinha – ou pelo menos uma de suas versões – ganhou meu coração. Quem me viu e quem me vê.

A Barbie deve ser a boneca mais amada e a mais odiada do planeta. A absoluta maioria das meninas a ama e projeta nela seus sonhos de ser uma mulher adulta, lindíssima, louríssima e poderosa. Não sendo nenhuma super-heroína, fica claro que seu poder emana da beleza e do dinheiro que a boneca ostenta, ou seja, o sonho de toda e qualquer mulher nos dias que correm, onde a visão de liberdade talvez seja mais cínica e, precisamente por isso, bastante pragmática. Beleza e dinheiro oferecem, sim, um tipo de liberdade a qual poucas mulheres têm acesso. Isso explica o sucesso da Barbie também entre jovens adultas que, embora não comprem as bonecas, consomem bolsas e sapatos com o perfil da marca estampado. A logo de um sonho materialista de poder feminino.

Mas a rainha das bonecas na categoria perua também enfrentou muitos detratores ao longo de sua glamorosa carreira e os petardos contra ela não são leves. Um pouco de reflexão por parte dos pais se faz necessária. Há estudos afirmando que a imagem de perfeição projetada pela boneca prejudica a auto imagem das meninas, colocando-as em risco ao buscarem um ideal de feminilidade impossível de ser alcançado. Suas roupas são muitas vezes inapropriadas, sua apresentação excessivamente sexualizada e o apelo ao consumo é constante nos acessórios e brinquedos que acompanham a boneca. Atento às críticas, o fabricante lançou linhas onde a apresenta como uma bem sucedida profissional adulta (Barbie arquiteta, por exemplo) que possivelmente trabalha para seu sustento, adequadamente trajada. Lançou filmes também, nos quais ela geralmente é uma boa moça que se torna a heroína defensora dos mais fracos. Nem por isso o modelo “casamento dos sonhos” com o parrudo (e “carrãozudo”) Ken foi retirado de circulação. Amor perfeito também faz parte do pacote da mulher bem sucedida. Estão aí as revistas femininas para comprovar que pouca pressão é bobagem na construção do ideal de mulher da contemporaneidade.

Mas como é que fui me afeiçoar pela Barbie, então? Aconteceu na abertura do filme Vida de Sereia, no qual a bonequinha é surfista. Depois de uma noite e um dia inteiro de febre, apatia e irritação, eis que a filha se ergue de um salto colocando-se em pé no sofá onde esteve deitada com a cabeça no meu colo, abre os braços e se equilibra em sua prancha de surfe imaginária, cantando empolgadamente – e imaginariamente no que tange à letra em inglês – a música da cena. Ela dança, ela ginga, balança os cabelos ao sabor de um suposto vento, os olhos grudados na televisão. Canta e vive a cena até o final, quando então se deita novamente, sorrindo. Se alguém mais estivesse na sala teria ouvido essa mãe murmurar “eu te amo, Barbie”, de todo o coração.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Passeio público

Quando entrei na rua Morom, no meu passinho meio manco, dei de cara com as costas de duas moças. Nunca vi seus rostos. Mas chamaram minha atenção da mesma forma que chamavam a atenção de quem por elas passava e, como aparentemente íamos ao mesmo destino, fiz questão de andar atrás delas observando a reação das pessoas a sua passagem.

Não havia nada errado com as moças, com exceção de estarem em desacordo com aquilo que é qualificado de bom gosto dentro de certos parâmetros. Caminhavam muito bem dispostas em seus altos saltos, exibindo quadris e seios volumosos em calças e blusas apertadas, balançando longos cabelos com evidentes apliques e demonstrando uma sensualidade exuberante planejada para assim o parecer. De tanto em tanto uma delas, mais pudica talvez, procurava puxar o cós da calça para cima e o pequeno top para baixo, numa tentativa vã de cobrir a área propositadamente exposta entre o início do fim dos quadris e o início das costas. Depois que a gente se veste para chamar a atenção para certos atributos bate um arrependimentozinho, quem nunca passou uma festa arrumando o decote, uma alcinha que teima em não parar no lugar ou uma barra de vestido que não esperávamos que estivesse tão curto? Pode acontecer com todo mundo.

Também não havia nada de ilegal, de imoral ou que engordasse na aparência das moças, nem em sua conduta. Mas elas estavam numa rua conhecida por seu comércio e serviços voltados para as classes médias e, embora essas classes médias apreciem quadros como o da “Mulher Melancia” e congêneres, há dentre as fileiras das transeuntes da tal rua inclusive aquelas que se preocupam com o que estão vestindo ao caminhar por aquela meia dúzia de quadras. Ou seja, aquele ambiente exigiria outro tipo de vestimenta e possivelmente uma conduta mais discreta, como parece constar no contrato comportamental não escrito da região. Cada área de um conglomerado urbano tem o seu, constando o que pode, o que não pode e o que se espera de quem adentra a vizinhança. Não estão escritos e muito menos registrados, mas esses contratos existem.

De forma que não me espantei dos risinhos, das invocações religiosas, das viradas de cabeça e olhares compridos, dos “pouca vergonha” e “que descaramento” provocados pela passagem das moças. Mas me assustei um pouco quando um senhor protestou dirigindo-se a um amigo: “aqui não é lugar para esse tipo!”. E o lugar era a rua. Passeio público. Acredito que fosse qual fosse o tipo a que as vestes e o comportamento das moças pudesse aludir, o passeio das suas individualidades pelo o que é público não poderia lhes ser negado.

Há dias em que me alegro imensamente com o crescimento – desordenado, dizem muitos – da cidade. Sorrio ao ver tipos diferentes nas ruas, observar a quebra dos códigos culturais que procuram identificar quem é o certo e o errado na vida, saborear o nascimento de uma pequena multidão de anônimos, personagens de histórias tão próprias que jamais lhes passaria pela cabeça escolher um traje com base no poder aquisitivo do local pelo qual transitam. Gente ocupada demais com a própria vida para reparar o que estão pensando a seu respeito. Creio que a cidade ganha com a quebra de certos contratos comportamentais que podem oprimir dois quesitos gêmeos que são fundamentais para uma vida bem desfrutada: o da liberdade e o da criatividade. E a rua é para todos.

sábado, 23 de julho de 2011

Dor do cão

Recentemente um de meus irmãos perdeu seu cachorro de estimação. Tinha um tumor e não resistiu, morreu quando ainda estava sendo preparado para uma cirurgia de risco. Conversei com meu irmão por telefone, pois já tendo perdido muitos cães na vida sabia da seriedade dessa dor. É a perda de um ser amado, de alguém que pertencia a família, que foi companheiro em nossa vida e compará-la a perda de um ser humano amado (É só um cachorro!) não ajuda a aliviar a dor de forma alguma, só acrescenta culpa e isolamento em quem já está passando por uma situação angustiante.

Então disse-lhe poucas palavras e ouvi bastante, sobre as providências que tomou para que o corpo do cão tivesse um final digno e ele pudesse vivenciar alguma espécie de desfecho que o auxiliasse no luto. Na nossa infância esse desfecho normalmente ocorria no pátio de casa com o auxílio de uma pá e lágrimas, mas essa não é uma alternativa viável onde meu irmão atualmente reside, até pela ausência de dois elementos centrais, a casa e o pátio. Não pude me furtar a um sorriso meio amargo ao ouvi-lo afirmar energicamente que seu cachorro não era um cão qualquer, era absolutamente especial. É o que todos dizemos ao perder o cão, o gato, o cavalo, ou qualquer outro animal que amemos. É como se justificássemos nossa dor, amenizássemos o sentimento de culpa por sofrer assim por um ser vivo que não pertence a nossa espécie. E, contudo, independente da espécie a que pertença, o amamos sinceramente.

Entristeci-me ao ouvi-lo ser a milésima pessoa nessa situação a me dizer “Nunca mais quero outro cachorro.” Acho que ele irá mudar de idéia noutro momento de sua vida. Assim espero. Sempre me parte o coração ver que a perda de um amado causou nas pessoas a rejeição a vivência de um novo amor. Dizemos coisas semelhantes quando de cabeça quente ao terminarmos um relacionamento amoroso, jurando que não queremos outro namorado, marido ou congênere “nunca mais”, mas dificilmente alguém leva isso ao pé da letra. No entanto, em relação aos animais acontece um fenômeno curioso. Não são raras as pessoas que desistem completamente da perspectiva de adotar outro bicho de estimação ao sofrerem com a morte de um. É como se não esperassem uma dor tão grande. Como se não tivessem plena consciência da quantidade de afeto que haviam investido no animal. Como se aquele sofrimento todo fosse quase uma deslealdade de parte do bicho ou de seus sentimentos, que o colocaram em situação tão frágil. Asseguram não terem condições de passar tamanho luto novamente e abdicam da convivência amorosa com um novo bichinho, cientes de que provavelmente viverão mais do que ele e chegará a hora de o enterrarem. É compreensível, mas é triste.

Dois dos meus cães estão envelhecendo. Observando-os me apanho pensando que chegará o momento de os enterrarmos, minha filha possivelmente nova demais para digerir o ciclo inevitável da vida (nós, os adultos, por acaso o digerimos?). Nessas ocasiões fico ensaiando mentalmente quais palavras direi a ela para que não desista de amar, não desista da vida apesar da dor, não se furte de investir em afeto mesmo sabendo de antemão o desfecho (não o sabemos, todos os dias?), não perca nunca a chance de viver a felicidade imediata, barata, intensa e pura que há no balançar da cauda de um cão que corre em sua direção.

terça-feira, 3 de maio de 2011

À deriva

Quando olhei meu rosto no retrovisor fiquei chocada. Era segunda-feira de manhã e eu estava observando o portão da garagem fechando-se atrás de mim, ou seja, começava ali um dia cheio de tarefas. Eu saía para o mundo. E não havia no meu rosto nem um pingo de maquiagem. Nem sequer protetor solar. Um gloss. Nada.
Eles não teriam como entender a minha dor. Mas a culpa era deles, eu tinha certeza. Os dois tinham horários a cumprir, compromissos fora de casa. A uma me cabia levá-la ao seu compromisso, lá permanecer e trazê-la de volta. Ao outro era preciso que eu retirasse meu carro para que o dele pudesse sair. (Há dias em que suspeito, não, tenho quase certeza, que as garagens são projetadas por arquitetos e engenheiros sádicos que planejam semear o mau humor e a discórdia entre as famílias.)

De olho neles, nos horários deles, nas roupas deles (afinal, ela eu precisava ajudar a vestir-se e mesmo ele me pediu ajuda com os botões da gola da camisa), eu sai sem me maquiar. Não que eu me maquie de verdade, nem sei bem como fazer isso, mas um rímel, um protetor solar, um gloss, por favor. São os segundos de um carinho mínimo para consigo mesma no espelho. Você declara para si “meus olhos ainda são bonitos”, ou seja o que for que você diga que ofereça à imagem no espelho um pequeno sorriso imediatamente retribuído e voilà, aí está um alento à segunda-feira que se inicia.

Não, saí sem meu pequeno encontro íntimo. A mente em todo lugar, menos em mim. A culpa só podia ser deles, desses que queremos em nossas vidas acima de tudo, mas, se possível, com um controle remoto. Ou um botãozinho escrito Pause, se não for pedir muito.

A autoestima de uma mulher também é feita de pequenos gestos dela para consigo mesma, gestos íntimos que não nos devem faltar. São pequenas bóias flutuando na correnteza dos afazeres diários. Como passar um rímel nos olhos que ainda amamos.
Felizmente havia um batom na bolsa. Recorri a ele e me maldisse pela incapacidade de carregar uma nécessaire com maquiagem básica na bolsa, além de outros itens “basiquinhos”. Jurei montar uma ainda hoje. Será que me lembro? Será que me permito esse coletinho salva-vidas no rio que navego? Ou opto pelo afogamento? Ou ainda, pior, talvez me regozije em atirar toras em frágeis embarcações alheias que trafegam pelo mesmo rio.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Daquilo que conhece um doutor

Escrevo esta coluna na estrada, a caminho da defesa de minha tese de doutorado. Ou seja, depois de defendida e aprovada a tal tese, me torno Doutor (é assim mesmo, sem o “a”, coisas da língua portuguesa. Embora eu prefira Doutora). Doutor em Literatura, no caso, mas não é isso que vem ao caso. A pergunta é, o que muda na minha vida com o título de Doutor? Em que isso me modifica como pessoa?

Um doutorado, um mestrado, uma especialização, uma graduação, ou até a conclusão do Ensino Médio, significam muito para quem os consegue completar, muitas vezes a custa de grande esforço pessoal, e, ao mesmo tempo, não tornam ninguém especial. Parece contraditório, eu sei. De maneira geral as pessoas olham com admiração aqueles que possuem mais diplomas do que elas, que atingiram um nível mais elevado de escolarização, que mostraram ser mais perseverantes em seus estudos. Espera-se que essas pessoas sejam mais esclarecidas, uma vez que mais estudadas, e elas passam a funcionar como formadoras de opinião para determinado grupo. É justo, escolarização é importante e não pretendo aqui defender o contrário, principalmente conhecendo quão poucos são os anos de estudo da população do nosso país. Contudo, há um perigoso atributo de superioridade deferido aos possuidores de titulações como a que estou prestes a receber, do qual abro mão sem qualquer pesar.

Explico. Ao realizar um doutorado (ou mesmo o Ensino Médio, insisto, em certos contextos) o indivíduo possivelmente se confronta com uma série de obstáculos exteriores, como o tempo e o dinheiro a despender – ambos normalmente escassos – as exigências dos professores, a ausência de certos conhecimentos, mas, sobretudo, ele se confronta consigo mesmo. É no encontro e na superação de suas dificuldades pessoais, em sua absoluta maioria de cunho emocional, que se dá a maior das lutas na conclusão de um curso, seja ele chamado “superior” ou não. Frente à tela em branco ou às vésperas da apresentação de um estudo, é comum que a angústia por colocar seu trabalho sob julgamento de terceiros tome o estudante a ponto de paralisá-lo. Alcançar o equilíbrio entre a crença na qualidade de seu trabalho e a humildade de vê-lo criticado, ao mesmo tempo que separa o julgamento dos méritos de seu estudos com o de sua integridade pessoal, é tarefa psiquicamente extenuante.

Não são raras as pessoas que projetam nas palavras proferidas por uma banca o equivalente a salvação ou danação de sua existência como pessoa. Paira na expectativa da nota máxima a outorga de um salvo conduto intelectual que o eleva em relação aos demais. Para quem sente dessa forma, as coisas se complicam. A autoria e a autoridade se confundem e exacerbam e a compreensão de respeito resulta equivocada.

Sempre que alguém realiza algo que desconhecemos nossa tendência é acrescer uma pitada de heroísmo ao feito, por imaginá-lo mais grandioso do que é, ou denegri-lo, por inveja. Daí para considerarmos o autor do feito como superior a nós mesmos e reverenciá-lo ou agredi-lo é um passo, ficando a escolha ao sabor das emoções do admirador. Nada disso vale a pena. Não há superioridade a ser atribuída a quem conclui, por exemplo, um doutorado, salvo em perseverança e em sua área de especialização. E, se for o caso, em sua longa jornada pessoal em busca do “conhece-te a ti mesmo.”

terça-feira, 8 de março de 2011

Tempo de Pensar Mal

Incomodada não ficava só a nossa avó, coisa nenhuma. A tensão pré menstrual, chamada TPM, conjuntamente com a menstruação propriamente dita, é uma prova mensal incontestável de que as mulheres e os homens são seres muito diferentes e vivenciam o mundo com base em experiências distintas. Claro que há tantas TPMs quanto há mulheres, nenhuma é idêntica. E é evidente, também, que nossa paciência para piadinhas acerca do assunto tem seus limites, como deve ter limites para os homens a paciência com piadinhas relativas ao exame da próstata. Ri-se na primeira, questiona-se seriamente sobre a possibilidade de ir embora na quinta (Eu, na terceira. Minto. Na segunda.).

Basicamente, a título de generalização hipotética, talvez se possa classificar as TPMs em três tipos. O primeiro seria o agressivo, aquele em que temos raiva das pessoas, pouquíssima paciência para o que não sai precisamente do nosso agrado (e algo sai, nesse período?) e atacamos inclusive a nós mesmas, vendo defeitos monstruosos nos nossos corpos inchados, nas nossas olheiras resultantes do sono agitado por culpa dos hormônios em ebulição e em quase tudo o que fazemos. O segundo seria o tipo sensível, que não necessariamente quer matar ninguém, mas sente como uma agressão qualquer comentário que não seja elogioso. Em casos extremos os comentários elogiosos podem ser compreendidos como ironia. Tendemos às lágrimas, lamentamos nossas escolhas de vida e por vezes acreditamos, sinceramente, que somos um caso perdido.

O terceiro tipo é o que eu chamo de “pensar mal”. Em que pese a presença de certa impaciência e uma sensibilidade um pouco exacerbada, o principal sintoma está no pensamento que vai sempre na pior direção possível. O filho está chegando de viagem e se atrasou? Deve estar envolvido num desastre rodoviário de grandes proporções. Estamos elaborando um projeto novo? Está fadado ao fracasso. Resultados de exames de saúde são abertos com grande ansiedade e lidos procurando-se números perigosos, sem cabeça para comemorar os números bons. Esperamos o pior. O que puder dar errado – ou seja, tudo – dará. Não interessa qual seja a área, o pensamento sempre toma um rumo ruim e parecemos inábeis para controlá-lo, impedir que crie problemas em nossas vidas pela ansiedade de já os experimentarmos em nosso imaginário.

Sei que há mulheres que não experimentam quase nenhum desconforto em termos de TPM e outras que misturam os sintomas acima descritos, sem contar aquelas que sentem dor, muita dor física. Seja como for, para a maioria de nós esse é um mau momento para se tomar grandes decisões e realizar julgamentos definitivos, principalmente sobre questões de nossa intimidade. Durante a menstruação deveríamos ter o direito de nos recolhermos como as mulheres de tempos muito antigos, não por qualquer tipo de impureza absurda que nos fosse imputada, mas para nosso conforto e por carinho conosco mesmas. Deveríamos celebrar nossa saúde e fazer massagens e escalda pés. Compreendo que nossa sociedade, organizada em torno do mundo do trabalho, não comporta tamanho “luxo”. Aliás, não comporta muito bem nem a existência do mênstruo. Conheci faxineiras que me disseram ouvir reclamações por irem muitas vezes ao banheiro trocar o absorvente.

Mas será que não poderíamos ao menos anunciar aos mais próximos, “olha, estou em período pré menstrual, tenho dor, inchaço, pessimismo e quem avisa amigo é”? Ou, pelo menos, algo do gênero “hoje é meu primeiro dia de menstruação e tendo a ficar sentada, ok?”. Diríamos isso sem ser tachadas de incompetentes e sem causar escândalo, que tal? Não? Ah, é que esse assunto é tabu e não pode ser comentado fora dos toaletes a não ser sob a forma de piada. Esqueci. Peço desculpas. Talvez meus pensamentos estejam conturbados.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

A fuga da torre

A mãe/madrasta/bruxa de Branca de Neve inveja a beleza da jovem em crescimento e se desespera frente a um espelho que indica seu envelhecimento enquanto a menina floresce. A mãe/bruxa de Rapunzel tranca a menina numa torre ao primeiro sinal de puberdade, temerosa do desabrochar da sexualidade desta e os conseqüentes vôos para o conhecimento e a vida adulta. A Outra Mãe (uma bruxa, na verdade) de Coraline deseja substituir os olhos da pré adolescente por botões, sugando-lhe a alma e a vida que está prestes a desabrochar. Mães que invejam suas crias e desejam engolir suas vidas, sua beleza, sua juventude. Por que será que este tema é recorrente na literatura?

O filme Enrolados, da Disney, não perde de vista a essência do conto original de Rapunzel, embora, como de hábito nas produções daquele estúdio, lhe ofereça uma releitura suave e com final feliz. No original a menina é seduzida por um príncipe que sobre a torre e a engravida. Furiosa com a traição, a bruxa corta seus cabelos e a condena a viver no deserto, onde Rapunzel, sozinha, dá à luz gêmeos. A bruxa ainda cega o príncipe que é condenado a vagar pelo mundo em busca de sua amada. Algumas versões contam que ao finalmente se reencontrarem, muitos anos depois, as lágrimas de Rapunzel curam o rapaz da cegueira.

Em Enrolados, embora o roteirista tenha criado uma trama diferente – delicada e divertida com personagens secundários inesquecíveis, como o cavalo Maximus – a cena em que a mãe amedronta, ridiculariza e solapa a auto-estima de uma temerosa Rapunzel que lhe pede permissão para, em seu aniversário, sair da torre, é fenomenal. Não sobraria pedra sobre pedra dos desejos individuais da jovem Rapunzel após a mãe lhe convencer de que ela não tem inteligência ou habilidades para sobreviver fora da torre sem seus “cuidados”, de que é feia e desajeitada e de que o mundo é um lugar terrível e apenas a mãe possui os talentos necessários para viver nele, talentos que a jovem jamais alcançará. No filme, mesmo após anos sob tal abuso Rapunzel não desiste em sair da torre e, quando o faz, descobre que a suposta mãe necessita de sua magia – leia-se juventude e beleza – como antídoto a sua feiúra e velhice. Na vida real, como dolorosamente retratado no filme Preciosa, seria impossível permanecer com o ego inteiro frente a ataques dessa natureza por parte da própria mãe. Mães que temem o crescimento da filha, que invejam a juventude e beleza desta e que confundem seu papel de apoiadoras e incentivadoras com o de concorrentes darwinianas em situação de busca de macho para acasalamento não são, infelizmente, uma raridade absoluta.

Os filhos, ao crescerem, de certa forma descortinam definitivamente aos pais sua decadência e finitude. Perceber o declínio de seu poder sexual, de sua beleza e mesmo a morte inevitável em uma curva do tempo mais adiante, ao mesmo tempo que aplaude, apóia e orienta o desabrochar da sexualidade, da beleza e os primeiros passos para a vida adulta que se inicia para uma filha é a prova definitiva da maturidade de uma mãe. A progenitora invejosa e predadora não é circunscrita à literatura e as filhas vítimas dessas concorrentes desleais precisam de ajuda externa ao elo com a mãe – de parentes, professores, amigas e terapeutas – para construírem a saída da torre onde estiveram trancafiadas.

Férias de verão

Ah, dizem todos, chegaram as tão esperadas férias de verão! Iremos descansar, não teremos aulas e sim lindos e longos dias de sol, as crianças brincarão, os cachorros passearão, pegaremos uma cor, caminharemos para emagrecer. Tomaremos sorvetes, iremos à piscina, organizaremos a casa, colocaremos o sono e a vida em dia. Nossa saúde será poupada das intempéries do frio e até para tomarmos banho estaremos mais bem dispostos. Mesmo quem trabalha em janeiro e fevereiro acha que vai levar uma vida mais tranqüila e aguarda de bom humor a chegada do calor que convida a passear depois do trabalho – diferentemente do frio, que remete todos de volta à “toca” a zelar por suas vidas.

É o que todo mundo acha quando começa o verão. Ou na primeira semana do verão. Depois os humores começam a se modificar, sutilmente a princípio, desbragadamente quando o mau humor se instala. Está quente demais. Não dá para sair nesse sol, que está “pelando”. O clube está muito cheio e não se sabe se as crianças não fizeram xixi na água. A pele descascou, ou não bronzeou como se desejava, ou bronzeou e o medo do envelhecimento precoce tomou conta e trouxe a culpa. O corpo não está no formato que se desejava (como pena o pobre corpo, sempre objeto de aversão) e colocar sunga ou biquíni resultou numa experiência bem menos excitante do que se esperava. Há pernilongos à noite e o calor não deixa ninguém dormir bem. O uso do ar condicionado pode ter causado um resfriado ou crise de rinite. O mormaço baixa a pressão e tira a vontade de caminhar ou passear. A cidade está vazia e as vendas não são boas. Não anoitece nunca e as crianças se tornam birrentas. O tédio se instalou e alguns sentem falta das aulas ou do trabalho, de saber o que fazer do tempo, basicamente. Outros sentem falta da vida social que possuem nesses círculos.

Ai, ai, as expectativas de vida perfeita, como elas nos limitam. Nada, mas nada mesmo, sai exatamente como se imaginou. Mas das coisas sobre as quais não temos controle (já reparou que é praticamente nossa vida toda?), o tempo meteorológico é dos que mais testa a capacidade de suportar frustração de parte dos humanos. Acima dele só o tempo cronológico, contra o qual travamos lutas tolas. Há os que odeiam o verão, há os que odeiam o inverno.

O Verão e o Inverno, juntamente com a Primavera das Rinites e o Outono dos Resfriados, parecem desconhecer solenemente nossas expectativas e desilusões. Marcham ao compasso imposto pelo tempo cronológico, misturam-se por vezes num dia só e cabe a nós, solitariamente conscientes de nossa existência e da deles, achar resignação, audácia, beleza e propósito em nossos dias, faça chuva ou faça sol.