quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Para ganhar um ano novo

Chegou o final do ano e com ele a esperança de que um ano novo signifique, para a maioria das pessoas, mudanças. Há aquelas que tiveram um bom ano e esperam que ele se repita, é claro. Mas a maioria absoluta deseja mudanças, grandes ou pequenas. Esse parece ser o momento certo para acreditar em renovação, como escreveu Carlos Drummond de Andrade em Cortar o Tempo:
Quem teve a idéia de cortar o tempo em fatias, a que se deu o nome de ano, foi um indivíduo genial. Industrializou a esperança, fazendo-a funcionar no limite da exaustão. Doze meses dão para qualquer ser humano se cansar e entregar os pontos. Aí, entra o milagre da renovação e tudo começa outra vez, com outro número, e outra vontade de acreditar que daqui para diante vai ser diferente.

Drummond sabia do que estava falando. É preciso acreditar que as coisas vão se modificar, não há vida que se sustente por muito tempo quando a esperança mingua. Ela está lá, na virada do ano, na contagem regressiva e na comemoração do fim de um ciclo. Doze meses, apenas isso. Mas desejamos crer que agora que o calendário foi zerado é possível que nós também tenhamos sido e, assim, se inicie uma fase completamente nova da vida.

Lembro que quando tinha por volta de seis ou sete anos de idade passei a compreender verdadeiramente o Ano Novo, ou, pelo menos, achei que tinha compreendido. Um ano estava acabando, todos estavam comemorando, uma grande mudança estava para acontecer. Quando o relógio bateu meia-noite corri para a enorme sacada típica dos apartamentos funcionais da década de setenta, e olhei para o céu. Esperei. Nada aconteceu. Era uma noite escura sem estrelas. Lá de cima esquadrinhei as redondezas, mas também não vi nada de novo. Vi as pessoas celebrando, isso sim, mas a mudança que eu esperava – por que será que achei que estaria no céu? – não veio. Um dos irmãos apareceu para me chamar para entrar. Expliquei que estava esperando que algo visível, a cor do céu pelo menos, se modificasse. Afinal começava um ano novo, certo? Ouvi suas abstrações a guisa de explicações, mas me senti profundamente decepcionada. Foi um daqueles momentos de perda da ingenuidade, no qual a criança olha com feroz criticidade o mundo dos adultos. O Ano Novo, de verdade, não existia.

Desde então, vejo com certa desconfiança a histeria coletiva em torno do suposto zerar dos cronômetros, balancetes, prazos, cronogramas e calendários, sejam internos ou externos, pelo milagre da chegada de um Ano Novo. Mas, em retrospecto, acho que compreendi. É preciso acreditar, é preciso superar a exaustão da esperança. Comemorar, sorrir, brindar e dizer: “Agora será diferente”. Ou seria: “Agora farei diferente”? É novamente Drummond quem fornece o mapa para a mudança desejada em seu Receita de Ano Novo, que vale a pena ler na íntegra:

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)


Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumidas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.


Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.