segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Passeio público

Quando entrei na rua Morom, no meu passinho meio manco, dei de cara com as costas de duas moças. Nunca vi seus rostos. Mas chamaram minha atenção da mesma forma que chamavam a atenção de quem por elas passava e, como aparentemente íamos ao mesmo destino, fiz questão de andar atrás delas observando a reação das pessoas a sua passagem.

Não havia nada errado com as moças, com exceção de estarem em desacordo com aquilo que é qualificado de bom gosto dentro de certos parâmetros. Caminhavam muito bem dispostas em seus altos saltos, exibindo quadris e seios volumosos em calças e blusas apertadas, balançando longos cabelos com evidentes apliques e demonstrando uma sensualidade exuberante planejada para assim o parecer. De tanto em tanto uma delas, mais pudica talvez, procurava puxar o cós da calça para cima e o pequeno top para baixo, numa tentativa vã de cobrir a área propositadamente exposta entre o início do fim dos quadris e o início das costas. Depois que a gente se veste para chamar a atenção para certos atributos bate um arrependimentozinho, quem nunca passou uma festa arrumando o decote, uma alcinha que teima em não parar no lugar ou uma barra de vestido que não esperávamos que estivesse tão curto? Pode acontecer com todo mundo.

Também não havia nada de ilegal, de imoral ou que engordasse na aparência das moças, nem em sua conduta. Mas elas estavam numa rua conhecida por seu comércio e serviços voltados para as classes médias e, embora essas classes médias apreciem quadros como o da “Mulher Melancia” e congêneres, há dentre as fileiras das transeuntes da tal rua inclusive aquelas que se preocupam com o que estão vestindo ao caminhar por aquela meia dúzia de quadras. Ou seja, aquele ambiente exigiria outro tipo de vestimenta e possivelmente uma conduta mais discreta, como parece constar no contrato comportamental não escrito da região. Cada área de um conglomerado urbano tem o seu, constando o que pode, o que não pode e o que se espera de quem adentra a vizinhança. Não estão escritos e muito menos registrados, mas esses contratos existem.

De forma que não me espantei dos risinhos, das invocações religiosas, das viradas de cabeça e olhares compridos, dos “pouca vergonha” e “que descaramento” provocados pela passagem das moças. Mas me assustei um pouco quando um senhor protestou dirigindo-se a um amigo: “aqui não é lugar para esse tipo!”. E o lugar era a rua. Passeio público. Acredito que fosse qual fosse o tipo a que as vestes e o comportamento das moças pudesse aludir, o passeio das suas individualidades pelo o que é público não poderia lhes ser negado.

Há dias em que me alegro imensamente com o crescimento – desordenado, dizem muitos – da cidade. Sorrio ao ver tipos diferentes nas ruas, observar a quebra dos códigos culturais que procuram identificar quem é o certo e o errado na vida, saborear o nascimento de uma pequena multidão de anônimos, personagens de histórias tão próprias que jamais lhes passaria pela cabeça escolher um traje com base no poder aquisitivo do local pelo qual transitam. Gente ocupada demais com a própria vida para reparar o que estão pensando a seu respeito. Creio que a cidade ganha com a quebra de certos contratos comportamentais que podem oprimir dois quesitos gêmeos que são fundamentais para uma vida bem desfrutada: o da liberdade e o da criatividade. E a rua é para todos.