segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Da camaradagem

“Como homem, meu sistema default é ‘estou sempre certo’. Mas depois que me casei mudei o default para ‘minha mulher está sempre certa’.” Má idéia, meu querido. Um dia, inevitavelmente, o sistema não iria agüentar. A aniquilação nunca é um bom elemento na construção do companheirismo. Nem a aniquilação do outro (estou sempre certo), nem a de si mesmo (ela está sempre certa). Embora boba, a piadinha acima funciona e está no livro Beber, Jogar, F@#er, publicado no Brasil pela Planeta, uma bem humorada contrapartida masculina ao best-seller Comer, Rezar, Amar, que conta a trajetória pessoal da americana Elizabeth Gilbert em busca de novos significados para sua vida. Já Beber, Jogar, F@#er conta a história de um homem recém divorciado em busca de uma nova vida, embora esse protagonista e suas aventuras sejam fictícias. E, por se tratar de ficção sob o ponto de vista masculino num mercado onde a maioria dos leitores são do sexo feminino, ficcionaram demais. Foram aparadas todas as arestas do protagonista que pudessem fazer as leitoras do livro chamá-lo de canalha e outros insultos. Criaram um cara tão legal, tão corretinho, mas tão gente boa, que é completamente inverossímil. Isso chateou a leitora aqui, que estava buscando uma visão de mundo do ponto de vista masculino sem enxertos de contos de fadas. Então radicalizei. Como continuava interessada em ler aventuras vividas por homens, escolhi “Vida”, a autobiografia do lendário guitarrista dos Rolling Stones, Keith Richards, publicada pela Globo Livros. Uau. Um porco espinho não apresentaria tantas “arestas” e ao protagonista podem ser enfileirados insultos dos mais diversos, com exceção de covarde ou preguiçoso. Como mulher, senti inveja desses caras nos tempos anteriores ao peso das drogas afundar completamente o barco. Inveja, em primeiro lugar, da liberdade enorme de quem vai pelo mundo com a cara e a coragem, sem o permanente temor de ser assediado ou agredido, o que ajuda muito a ser corajoso. E em segundo lugar, inveja da imensa camaradagem entre os rapazes. O grau de intimidade, o foco na música, a confiança mútua, mesmo rolando ciúmes e grosserias, coisa que os homens tiram de letra e nós, mulheres, definitivamente não. E é aí que voltei ao Beber, Jogar, F@#er, para compreender plenamente o que o protagonista buscava bebendo, jogando e mesmo fazendo pouco uso do terceiro verbo do título. O que ele havia perdido durante seus anos de casado era justamente a camaradagem, o elo de ligação com outros homens por motivos não relacionados a trabalho ou família. E, por isso, ele havia perdido um bocado de sua alegria. Compartilhar atividades é, sabidamente, uma forte característica da formação da amizade masculina, enquanto que a feminina se dá pelo estabelecimento de um diálogo íntimo. A paixão e o ideal de romance – o tal encontro de duas metades – tende a isolar os homens (e as mulheres também!) de seus pares e criar uma ilusão de que é possível encontrar plena realização apenas no convívio familiar e amoroso. Mas é possível que a camaradagem, as brincadeiras e a atitude de aceitação geradas pelo convívio com outros homens não possam ser substituídas pela convivência com uma mulher, por mais amorosa e companheira que ela seja. E, cá para nós, será que essa substituição é necessária? Essa fusão das duas metades beneficia alguém? Ou há vários rios de afeto em nossos peitos que correm bem felizes em leitos separados sem que um ameace o outro