domingo, 15 de abril de 2012

Tique, taque

Eu costumava cantar “time, time, time, is on my side. Yes it is!” (O tempo está ao meu lado. Ele está sim!), refrão de uma música dos Rolling Stones. Eu era jovem e cantava com absoluta convicção. Essa certeza, contudo, foi se esvaindo por esses dedos que contam o passar dos anos, juntamente com outras tantas verdades absolutas da juventude. Por alguma razão, ao acumularem-se os anos cresce o número de incertezas. As convicções vão rareando e sobram apenas algumas poucas, essenciais, e que ainda assim volta e meia passam pelo escrutínio da dúvida. O que é bom, contém a egolatria e mantém a sanidade, principalmente em se tratando do tempo, um dos deuses mais lindos segundo o Caetano. Mas até o próprio Caetano – na música Oração ao Tempo – tenta entrar em acordo com ele, exemplificação da nossa dificuldade em fazê-lo.

Acreditar ter o tempo sob seu comando é uma ilusão grandiloquente tola. Lutar contra o tempo, uma batalha perdida que deixa gosto amargo no corpo. Segundo Caetano o tempo é “compositor de destinos” e “tambor de todos os ritmos”, o que me leva a devanear sobre a necessidade de entregar-se ao tempo como faz um cão adormecido sobre o sofá em plena manhã de outono. Mas não somos cães e me dou conta que estarmos à mercê do tempo também não é uma verdade absoluta, porque nossos sentimentos parecem influenciar a forma como o vivenciamos, quase como se ele não fosse o perene e inalterável passar dos segundos, mas como se existissem vários tempos dentro de nós. Talvez seja minha relação com o tempo que não é normal. O tempo, há tempos eu acho, não me parece linear e paulatino, mas absurdamente acelerado e escorregadio, alternando essa velocidade incompreensível com momentos de tal imobilidade que chego a jurar que está se mexendo para trás, retornando, como se o Super-Homem tivesse feito a terra girar em sentido contrário, alterando sua rotação e, assim, o tempo. É, eu sei que isso não é possível, mas nos quadrinhos parecia uma ideia bacana.

Possivelmente são os filhos, ou a vivência de crianças crescendo ao nosso redor, que nos fazem enxergar com mais clareza a passagem do tempo externo. No entanto, enquanto são pequenas as crianças podem passar de verdadeiros buracos negros que sugam as vinte quatro horas do dia, reduzindo-o para três ou quatro, a imobilizadores dos relógios, quando você está contando os minutos para liberar uma criança que está aos berros na cadeirinha de pensar. (Provavelmente a criança, como os adultos, não pensa quando está aos berros. Não sou a melhor consultora sobre como se usa a cadeirinha de pensar.) Os hospitais também são lugares excepcionais para compreendermos o gerenciamento escorregadio do tempo e não apenas quando estamos internados. A perplexidade diante de uma mudança brusca da nossa vida em questão de minutos nas emergências e o estancamento absurdo do relógio que consultamos compulsivamente na sala de espera dos centros cirúrgicos nos revela da desarmonia entre o tempo interior e o exterior e da insubmissão de ambos a nossa vontade.

Enquanto releio esse texto fico sabendo da morte do Millôr Fernandes, um pensador essencial na minha juventude. Há poucos dias morreu um humorista presente na minha infância, Chico Anysio. O tempo interno inveja o cão dormindo sobre o sofá. Atrás do sofá, emoldurado na parede, o tempo externo golpeia baixinho meu pesar: tique, taque.