quarta-feira, 17 de março de 2010

Felizes, mas não para sempre

A arte não perdoa as princesas dos contos de fadas. E nem a vida real. Está fazendo muito sucesso um livro em espanhol intitulado “La Cenicienta que no quería comer perdices”, mais uma releitura do clássico conto de fadas, Cinderela. O livro deve sair em breve no Brasil, mas vários blogs e jornais já se derramaram em elogios ao inusitado trabalho conjunto de duas mulheres, Nunila López, escritora, e Myriam Cameros, ilustradora. As autoras, até então, não eram campeãs de vendas em seu país, Espanha, e nem sequer tinham dinheiro para bancar essa publicação, que fora recusada pelas editoras. Mas após conseguirem relativa divulgação via internet e realizarem o lançamento de uma pequena tiragem, uma editora grande se interessou e o sucesso foi imediato. A chave para tal sucesso? Ironia feminina, uma arma poderosa. Ao ironizar o sonho presente no imaginário feminino de casar com um príncipe “encantado”, mudar-se para um castelo e ser feliz “para sempre”, as autoras atingiram um nervo também universal no imaginário feminino: o da frustração com a idéia de ser “feliz para sempre” caso encontre o homem “certo”. Convenhamos, é muita exigência para a vida real e procurar seguir esse script só pode terminar em frustração e mágoa.
O título do livro em espanhol faz referência ao desfecho dos contos de fadas naquela cultura que, ao invés do “foram felizes para sempre”, terminam com “y fueron felices y comieron perdices”. Aparentemente, a Cinderela das espanholas não queria comer perdizes ou ser feliz para sempre. Essa Cinderela parece mais próxima do princípio de realidade como proposto por Freud, mais apta a dar conta das exigências e malogros inevitáveis na vida, onde não é possível ser feliz todo o tempo, onde os príncipes encantados não existem e nem é justo delegar a terceiros toda a responsabilidade pela nossa felicidade. Assim, a personagem, que sofre por suas próprias inseguranças e acaba descobrindo que o príncipe não possui solução para seus problemas, decide tomar as rédeas de sua existência. Acaba por recorrer à fada madrinha, que se chama “Basta!”, se liberta daquela vidinha vulgar e vai dar rumo a seus anseios abrindo um restaurante vegetariano, ou seja, nada de perdizes no cardápio.
Transformar os destinos das beldades dos contos de fadas para além do “felizes para sempre” de forma a contrastá-los com a dura realidade, foi o que fez a fotógrafa Dina Goldstein em sua série “Fallen Princesses”, algo como “Princesas Decaídas”. Seu trabalho, contudo, é muito mais ferino que o de Nunila e Myriam, aproximando-se do humor negro. As fotografias são primorosas e surpreendentes. Branca de Neve está infeliz com quatro filhos pequenos para cuidar enquanto o príncipe assiste à TV, esparramado na poltrona, cerveja em punho. Cinderela bebe sozinha em um típico bar americano de beira de estrada, observada por homens de aparência sórdida. Rapunzel, careca, enfrenta o câncer em uma cama de hospital, agarrada a uma peruca loura de longas tranças. Bela submete-se a dolorosos procedimentos estéticos na vã esperança de reter sua beleza na luta contra a passagem do tempo. Esse trabalho, postado inicialmente foto a foto no blog da fotógrafa, também alcançou reconhecimento mundial via internet e atualmente pode ser encontrado em um site inteiramente dedicado à série, o www.fallenprincesses.com. Temos que reconhecer que, embora tristes, essas cenas não são impossíveis e nem sequer incomuns na vida de mulheres reais.
Li na internet depoimentos de mulheres de diferentes nacionalidades, empolgadas com a publicação das duas criativas espanholas. Vejo refletido nesses posts e na recepção das fotografias o anseio coletivo das mulheres ocidentais do século XXI de se livrarem de padrões absurdos de exigência, inclusive os de serem magras, belas, sedutoras, bem sucedidas, disponíveis e felizes, para sempre.

Em tempo: a escritora e artista plástica porto-alegrense Paula Mastroberti também já fez deliciosas releituras e travessuras com os contos de fadas, que podem ser obtidos através de contato com a própria autora, pelo e-mail paula@mastroberti.art.br .

Artigo publicado no jornal O Nacional, em 13/02/2010