quarta-feira, 17 de março de 2010

Nada do que é literatura me é estranho

Tenho visto em mim mesma o poder que a leitura do texto literário pode exercer, em escalas, poder-se-ia dizer, grandiosas. Tenho ouvido o retumbar de tambores, tenho sentido os tapetes se esvanecerem sob meus pés, tenho visto as tempestades se aproximarem e obscurecerem o sol em questão se segundos. Também tenho sentido macios cobertores me acolherem e aquecerem do frio cortante e mãos hábeis me secarem com cuidado, recolhendo-me da chuva gelada. Felizes chuvas de verão, mornas e libertadoras têm se abatido sobre mim, bem como ventos enlouquecedores que provocam a perda do sentido de quem se é e de onde se está. Areias que enterram ou desenterram sonhos grandiosos se movimentam sem parar e ondas gigantescas varrem certezas que julgava serem pontos de apoio do meu julgamento de mundo. Há praias mansas também, pores-do-sol e luares feitos sob medida para viver um grande amor e lareiras crepitantes na frente das quais me enrodilhar com um gato ou um cachorro, seja da espécie humana ou não. Tudo isto sem sair de casa. E não é de hoje. Essa vida dupla, que enche minha vida real de mais mistério, mais clareza, maiores questionamentos e novas percepções da realidade, está ao alcance de todos os que gostam de histórias.


Sempre li ficção, fosse ela alta ou baixa, gorda ou magra, crente ou iconoclasta. Li clássicos, sim, mas não li todos os assim chamados e não creio que seja um pecado não tê-los lido, seja em que idade for. Li e leio cultura pop e best sellers também e encontro ali coisas ótimas. E a razão é bem simples: não há como saber de onde surgirá o soco que se dirige ao estômago do leitor e nem se sabe se ele irá desviar-se ou ser atingido em cheio. A vivência que vem do texto literário, seja ele aclamado pela academia ou arrasado pela crítica a ponto de não ser considerado “literário”, pertence ao leitor e tão somente a ele. Essa vivência que enriquece a minha vida e de outras tantas mulheres, é que me encanta, não a crítica. Curiosamente, tenho encontrado poucos homens adultos envolvidos com o texto ficcional, afora aqueles que fizeram da área da Literatura e congêneres seu ganha-pão. Há teorias bem interessantes que explicam porque os homens se interessam mais pelo texto informativo em detrimento do ficcional. Uma delas é a da psicologia cognitiva que, se bem compreendi, considera as mulheres mais empáticas do que os homens, possuidoras de um leque emocional mais amplo em termos de percepções de sentimentos e, por isso, a literatura lhes parece mais atraente, posto que compreendem melhor os meandros e camadas presentes em tramas e personagens ficcionais. Se isto for verdade, ainda que parcialmente, somos nós, as mulheres, boas leitoras da vida não ficcional e, assim, naturalmente intérpretes de mundo nas nossas famílias. Conheço muitas intérpretes familiares que acodem aos pais, que podem estar tendo dificuldades em ler as modificações cada vez mais velozes na sociedade; aos cônjuges, aos quais apresentam as entrelinhas de fatos que eles julgavam unidimensionais; e aos filhos, a quem se incumbem de apresentar toda a gama de cores que conseguirem perceber, no mundo. A leitura, muitas vezes um tempo roubado para nós mesmas e visto até com desprezo em certas famílias, devolve em dobro. Por isso, deixem-me ler em paz, ler seja o que for pois me humanizo, nada do que é literatura me é estranho.

Artigo publicado no jornal O Nacional em 07/03/2010