quarta-feira, 17 de março de 2010

Maria, escrava doméstica

Há um curta de animação chamado Vida Maria, de autoria de Márcio Ramos, que deveria ser material obrigatório para psicólogos, professores, e toda a espécie de cuidadores da infância. Deveria, sobretudo, ser material de divulgação ampla entre as mulheres, não importa de qual classe social, afinal somos nós, mulheres, as grandes cuidadoras da infância, as molas mestras pelas quais passa a saúde física e emocional da família.
A animação em questão é de cortar o coração. É uma história de poda de asas quando essas mal começam a apontar. Tendo o sertão do Ceará como pano de fundo – e o governo daquele estado como promotor através da lei estadual de incentivo à cultura – , nos traços dos personagens vemos transparecer a aridez da vida das Marias que apresenta, todas pertencentes a uma mesma família de mulheres, definhando sob o sol, laborando incansavelmente pelo bem da família. Há um caderninho na casa, um só, onde cada uma, na infância, desenhou seu nome, numa tentativa solitária e vã de alfabetização. Logo os afazeres domésticos as chamam, mesmo pequeninas. Lá se vão elas a lavar, limpar, cozinhar, cuidar dos irmãos pequenos e dos homens que chegam do trabalho, e o caderninho fica abandonado, mal bordado com suas letrinhas infantis. Outra Maria virá, de uma nova geração, e irá também fazer ali sua tentativa de realização da infância: brincar, descobrir, aprender.
Assistimos os sonhos dessas moças Marias serem enterrados, transgeracionalmente, sem que nenhuma mãe interrompa o ciclo para que a geração seguinte tenha uma chance de escapar ao destino de envelhecimento precoce, analfabetismo e parição excessiva. A única fala no filme é a da primeira mãe retratada, a chamar a menina que vê “à toa”, debruçada sobre o caderninho no batente da janela e diz tudo: “Em vez de ficar perdendo tempo desenhando o nome, vá lá pra fora arranjar o que fazer, vá. Tem um pátio pra varrer, tem que levar água pros bichos. Vai menina! Vê se tu me ajuda, Maria!”
Diz o dito popular que a fruta não cai longe do pé. Pessoalmente acredito que o pé não gosta que a fruta role para longe. É, talvez, da natureza do pé. O pé tem braços invisíveis, palavras que não são audíveis aos ouvidos humanos, mas que conseguem, esses braços e essas falas, penetrar no cerne da fruta e segurá-la para que permaneça presa a um caminho conhecido, portanto, seguro. Ainda que medíocre, ainda que castrador e mesmo chegando a ser um fardo, de maneira geral o conhecido é tido como mais seguro e, consequentemente, a melhor indicação que podemos fazer para nossos filhos. Afinal, nenhuma mãe amorosa lançaria seus filhos rumo à escuridão, certo? Até a mãe da Chapeuzinho Vermelho lhe disse que não fosse à floresta! Ela é que desobedeceu e nós sabemos no que deu.
Mas a questão é que o cuidar, o educar – essa tarefa tão complexa que na verdade é impossível – não deveria ser simplesmente repetir destinos. Na nutrição que nós, mães, oferecemos às famílias e, fundamentalmente a nossos filhos, deveriam estar presentes as muitas possibilidades de se evadir para longe das tradições das gerações passadas. Não temos como saber que novos caminhos serão esses e nem sequer onde podem levar, para o bem e para o mal, mas a possibilidade de que se faça diferente, de que os filhos possam se realizar enquanto indivíduos, criando asas que os levem para paragens muito diferentes daquelas que havíamos imaginado para eles, tem que estar lá. Creio que é preciso manter uma porta aberta por onde os filhos fujam dos destinos e tradições das famílias. Não se deve fechá-la. É por essa mesma porta que eles retornarão anos mais tarde, trazendo novos perfumes e cores e abraçando o lado bom da família que se renova e, assim, se afasta da raiz latina onde “famulus” designa, dentre outros, “escravo doméstico”.
Publicado no jornal O Nacional em 21/02/2010